sexta-feira, 1 de março de 2013

Dormir na rede é bom demais


Dormir em rede garante maior qualidade de sono. Isso é o que afirma uma equipe de cientistas suíços e franceses que publicou recentemente um estudo onde afirma-se que o movimento de vai e vem de uma rede melhora a qualidade do sono e ajuda as pessoas a dormirem mais rapidamente.
A rede, também destaca o estudo, tem um efeito prolongado na atividade cerebral, aumentando as oscilações mentais e a irrupção da atividade conhecida como eixos de sono: estes efeitos são consistentes com uma atividade neuronal mais sincronizada, característica do sono mais profundo.
Os pesquisadores pretendem averiguar se a rede de dormir pode ser utilizada para ajudar pessoas que sofrem de insônia.
Eu não sofro de insônia, ou não regularmente, pelo menos: só às vezes me acontece de não dormir facilmente, quando os pensamentos impetuosos não se acalmam de jeito nenhum. Mas, podendo escolher, seja para dormir que ficar a noite inteira lendo um livro que não se deixa fechar, eu prefiro sempre deitar numa boa rede que na cama. Boa rede pra mim não tem muita frescura: deve estar bem armada e não pode estar muito deformada pela idade ou usos diferentes do deitar pra dormir. Se estiver limpinha e cheirosa, já é boa demais, então!
De acordo com os registros recolhidos até hoje, a rede de dormir possui o copyright sul-americano. A primeira citação nominal em português da rede de dormir foi feita em 27 de abril de 1500 pelo escrivão da frota portuguesa, Pedro Vaz de Caminha, na ocasião em que o Brasil foi descoberto. Segundo consta em seus relatos, os índios dormiam sobre redes altas, atadas pelas extremidades. 
As redes feitas pelas mulheres indígenas eram resistentes, de fiação simples e malhas grandes, por este motivo faziam lembrar a rede de pescar.
O nome “rede”, assim, foi dado pelos portugueses. Os índios a chamavam de “ini”.
O folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo no seu ensaio "Rede-de-Dormir" faz uma apologia a esta peça domésticas integrante da vida cotidiana das gentes do Norte e Nordeste brasileiros, comparando-a com a cama, e enaltecendo as vantagens da rede: "O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-se nele  procurando o repouso numa sucessão de posições. A rede toma o nosso feito, contamina-se com os nossos hábitos, repete, dócil e macia a forma do nosso corpo. A cama é hirta, parada, definitiva. A rede é acolhedora, compreensiva, coleante, acompanha, tépida e brandamente, todos os caprichos da nossa fadiga e as novidades imprevistas do nosso sossego  Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação física do cansaço. Entre ela e a cama, há a distância da solidariedade à resignação".
Autenticas e eficazes também as palavras de Sérgio Buarque de Holanda (Caminhos e Fronteiras): "Em contraste com a cama e mesmo com o simples catre de madeira, trastes sedentários por natureza, e que simbolizam o repouso e a reclusão doméstica, ela pertence tanto ao recesso do lar quanto ao tumulto da praça pública, à morada da vila como ao sertão remoto e rude. (...) O fato é que as redes - redes de dormir ou de transportar - são peças obrigatórias em todos os antigos inventários feitos no sertão".
Ainda hoje, no Vale do Assu, teatro das nossas aventuras IGARUANA, assim como em toda a área rural e silvestre do Norte e Nordeste do Brasil, a rede deve ser muito mais usada que a cama para dormir.
Aos amigos que vem, no Sitio Araras de Itajá RN, conhecer meu "bom retiro" sertanejo à beira-rio, assim como aos participantes da expedições em canoa, logo para eles entrarem no estilo local, sempre ofereço como opção de pernoite uma boa rede armada por baixo do imbuzeiro ou na varanda da casa.
Mas a maioria deles, entre os quais uns tantos brasileiros sulistas também, diz que gosta muito da rede para descansar, mas não sabe dormir uma noite inteira. Alguns dizem que ficam com dor nas costas.   
Mas vamos ver como com poucos cuidados, a rede se transforma num berço ancestral onde dormirmos sonos e sonhos profundos. 
A rede deve ser frouxamente atada, para nela podermos deitar como se estivéssemos em uma suave bacia com a forma e tamanho do corpo. As linhas longitudinais da rede têm o mesmo comprimento de punho a punho. Quando atamos a rede de maneira frouxa, determinamos uma elipse e uma elipsoide  Quando sentamos no meio da faixa mediana, fixaremos com o nosso peso, aquela faixa que terá a largura de nosso traseiro. Em seguida, devemos deslizar as pernas para um lado e o tórax para o outro, até alcançarmos com todo o corpo a superfície da elipsoide  A direção de repouso entre a crista central e a parede lateral da elipsoide forma um ângulo de aproximadamente 30 graus com relação ao plano vertical dos punhos.
Entendeu?
Ao invés de dormir no mesmo sentido da rede, que é a primeira posição que pode vir à mente, com os pés em direção a um punho e a cabeça ao outro, deite na diagonal, um ângulo de aproximadamente 30 graus, ajeitando a posição até que não fique do seu próprio gosto, pois a elasticidade do tecido da rede ainda absorve as diferenças do seu corpo (traseiro, cintura, costas), tornando-a ainda mais confortável.
Durante as expedições IGARUANA, eu não tenho duvidas: melhor jeito de dormir é na rede, de preferência armada por baixo de uma arvore onde de manhãzinha vem cantar os passarinhos.
É poesia demais pra você?
Sei. Adormecer deitado no colchão  assistindo o céu estrelado através do mosquiteiro da barraca sem telo de chuva, também dá paz pra alma. 
Para todos os quem preferem,  para o melhor conforto e descanso possível, temos boas barracas e colchões infláveis aconchegantes,  não se preocupem. 
Mas pra mim mesmo e meus ajudantes locais, Marcelo e Valdo, jovens sertanejos que nasceram e cresceram à beira do rio e dormiram a vida inteira na rede , um bom local onde acampar deve ter necessariamente uma arvore onde armar pelo menos trés redes.
Para terminar, quero lembrar o bom costume do bisavô da minha filha, Marina Luna: o paraibano José Domingos Dantas, popularmente conhecido como Zé Domingos, sertanejo ilustre pelas bandas do Seridó de Santa Luzia e Patos, com treze filhos e centenas de descendentes, dormiu a vida inteira na rede e continua dormindo, aos oitenta e tantos anos, deitando às sete e meia da noite e levantando antes do amanhecer, "quando o galo canta e a vaca chama", pois, como ele confirma: "não tem dormida melhor que essa".
Eu acredito nele.