terça-feira, 21 de abril de 2015

Exp. Itacoatiara - Março de 2015 - Parte #2


Exp. ITACOATIARA - Março de 2015
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Parte #2

1º dia de expedição
No quebrar da barra¹, estiquei uma perna fora do lençol, para alcançar com o pé uma raiz do imbuzeiro, e dei novo impulso ao balanço da rede. Assim, dormi mais uma meia hora, ou, por melhor dizer, eu acordei devagar.
Quando me levantei, dobrei logo a rede e a guardei no saco estanque amarelo, junto com o lençol e as duas cordas que servem para arma-la, em arvore, latadas, varandas.
Sol fora², tomei meu primeiro café em pé no alpendre, já procurando alguém que me ajudasse a carregar a canoa até o rio.
Quem não tardou a aparecer, cruzando a estrada de terra com passos largos, foi Domingo, filho de Zé Lopes, que na hora se dispôs a ajudar-me.
Puxamos umas das canoas laranja da casa de taipa, onde ficam guardadas, e em poucos minutos a levamos até a prainha de areia, na beirada, ainda aproveitando da viagem para carregar na canoa os remos, o colete e outros objetos leves.
Depois, eu dei mais três viagens da casa pro rio, carregando o resto das bagagens. Tomei meu segundo café, fechando a casa e conferindo que não estivesse me esquecendo nada. Passei na vendinha de Titico, paguei a água e comprei uma garrafinha de querosene para minha lamparina.
O bom de viajar numa canoa canadense é que você pode levar consigo tudo o que quiser, sem faltar o espaço. Viajei por muitos anos em motocicleta, tentando reduzir sempre ao essencial minha bagagem. Agora em canoa, não me preocupo com isso. Vige, aliás,, nas minhas aventuras, uma regra muito popular no mundo da nautica: "Quem tem dois tem um. Quem tem um, não tem nenhum". Tudo o que não pode faltar, ou o que pode fazer uma falta significativa, deve ser levado, pelo menos, em dobro. Mas não precisa exagerar!
Outra regra importante a bordo de minha embarcação é: "Um lugar para cada coisa. Cada coisa em seu lugar". Manter o equipamento e a bagagem em ordem é fundamental para a segurança e organização de uma pequena canoa de 16 pés. Pode parecer inutil dizer que enconcantrar o que você esta procurando sem perder tempo faz uma grande diferença. Mas é sempre bom lembrar aos desavisados que o que não pode molhar sempre deve ser tratado pensando nisso. E que facas, facões e outras ferramentas perigosas nunca devem ficar soltas dentro da canoa.
A disposição da carga a bordo está também diretamente relacionada ao equilíbrio dos pesos. Eu gosto de aprumar direitinho minha canoa, adriçada e sem compasso.
"Até agora não encontrei uma solução melhor que carregar uma quantidade extra de água a bordo, para servir de lastro", expliquei para Biu, que me perguntou o que ia fazer com tanta água mineral.
E foi assim que, arrumando a canoa com todo cuidado, e ainda mais conversando com Biu e Tonho, que não tinham nada para fazer, zarpei do Sítio Araras só depois das sete e meia.
Com o sol já quase alto no céu, e sem vento, literalmente molhei toda a camisa de suor para chegar até a Ilha da Caixa d'água, onde o rio se estreita e termina o grande lago artificial, porão da Barragem ARG. Nas ruínas da vila, estava arranchado um grupo de pescadores de São Rafael. Como é comum na região, eles ficam arranchados numa ilha, ou mesmo na margem, por uns dias ou até semanas, pescando nas redondezas, enquanto o trabalho seja recompensado com bons frutos. Pescam com redes, anzol, bulha; trabalham de dia e à noite também. Segundo os dizeres populares, uma hora boa para "bater bulha" é entre o primeiro e o segundo canto do galo, pois é nessa hora que o peixe vai comer no raso.
Nas horas mais quentes, descansam na sombra, ou ficam consertando as redes danificadas e salgando o peixe. O dono da pescaria, em seu barquinho motorizado, traz mantimentos e leva o pescado.
Cumprimentei de longe, mas eles me chamaram. Me convidaram para um "café de duas mãos", quer dizer, café bem quente e batata doce cozida.
Eles quiseram me alertar sobre a chuva que ia cair.
"Olha lá!", me disse um, apontando para o sudeste. No horizonte, uma massa compacta de nuvens escuras anunciava o mau tempo chegando.
"Em duas horas, vai cair uma chuva grande", disse outro pescador.
"Eu vi as nuvens no horizonte", disse eu. "Espero chegar em São Rafael antes da chuva", falei com tono esperançoso e otimista.
"Cuidado com as maretas do vento Norte", me avisou um deles.
"Pode deixar", respondi. "Se começar a chover forte, ou ventar muito, eu paro".
Dito e feito. Me despedi dos pescadores e voltei à canoa. Remei por mais de uma hora numa boa, Cheguei a pensar que as nuvens carregadas de chuva fossem passar longe, depois a brisa do Leste aumentou de intensidade repentinamente e o vento mudou de direção.
Com as primeiras rajadas do vento Norte, caiu uma chuva fininha, mas o céu todo escuro não deixava dúvidas. Contrastado um pouco pelo vento, escolhi um bom local da margem onde encostar e consegui chegar lá antes que a chuva engrossasse.
Na ribeira de areia, puxei a metade da canoa em seco, depois vesti a jaqueta impermeável, calcei bem na cabeça o chapéu e me sentei num banquinho, dando as costas pra chuva.
Choveu e choveu por mais de hora e meia. Comi todo o pacote de castanhas de caju, que encontrei no bolso da jaqueta. Na hora de revisar o equipamento, me acostumei em guardar num bolso da jaqueta impermeável alguma coisa para mastigar, quase sempre castanhas de caju ou um pedaço de rapadura embrulhado; isso ajuda a enganar o tempo e injeta uma dose de energia boa para o conforto da pessoa.
Comecei a pensar que fosse escurecer antes da chuva parar. Olhei pelos dois lados à procura de um local onde arranchar, mas não vi nada de interessante. Nenhuma arvore boa para armar minha rede. Só capim espinhento e baixos arbustos retorcidos. Mais chuva.
Enfim, as nuvens negras passaram e a chuva parou. Sem perder tempo, esgotei a água acumulada no fundo da canoa, tirei a jaqueta, vesti o colete e comecei a remar ligeiro em direção ao porto das canoas de São Rafael. Tinha menos de uma hora de luz e ainda uns cinco quilômetros para percorrer. Remei sem parar e cheguei a destino anoitecendo. Aproveitando da estrutura de uma latada à beira do rio, armei logo minha rede e, com a lona azul quadrada aprontei um abrigo para passar a noite enxuto.
No meio de quatro velhos tijolos maciços, acendi um fogo pequeno, com apenas três pedaços de carvão e, como isca, o papelão de uma meia bandeja de ovos, todo picotado. Preparei um bom café quente, que tomei já deitado na rede. Não me deu vontade de cozinhar. Comi um sanduíche com queijo e salame, mais duas bananas. Bebi a última xícara de café, que estava já morno. Calcei meias e gorro para não sentir frio na madrugada e dormi assim que fechei os olhos.

¹ Quebrar da barra = 5 horas
² Sol fora = 6 horas

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