quarta-feira, 22 de abril de 2015

Exp. Itacoatiara - Março de 2015 - Parte #3


Exp. ITACOATIARA - Março de 2015
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Parte #3

2º dia de expedição
Quando acordei, o céu estava já claro e se tingindo de azul. A visão das ruínas da antiga cidade de São Rafael me deixou boquiaberto por um pedaço. Durante o verão, o nível do rio devia ter baixado mais uns três metros. Chegando no escuro da noite anterior, não tinha percebido muita coisa na penumbra.
Todas as ruínas da igreja estavam à vista. O topo da torre do sino, que ficou erguido acima das águas por um quarto de século e, repentinamente, ruiu em 2010, estava de novo sob o olhar de todos. Quando a torre desmoronou, a cúpula ficou inteira, contudo toda inclinada de um lado.
O que resta da fachada da igreja pode enganar a mente das pessoas cuja imaginação pode correr dos passados mais remotos até futuros improváveis.
Caminhei até a margem, para pegar algumas coisas na canoa, mas não resisti a tentação de nadar entre as ruínas. Com todo o cuidado para não esbarrar em obstáculos submersos, nadei até as ruínas da igreja. Dei a volta nelas, demorando-me ora num canto, ora em outro, curtindo os pormenores e as perspectivas, na silenciosa calmaria do amanhecer daquela segunda-feira.
Foi o barulho do motor de algum barquinho chegando que me trouxe de volta à realidade. Nas minhas viagens, eu tinha já chegado ao fim da película "O planeta dos macacos", quando o protagonista encontra a Estátua da Liberdade enterrada numa praia deserta.
Acendi o fogo para fazer o café e comecei a desmontar o acampamento. Depois do primeiro barco,, chegaram o segundo e o terceiro. São as características canoas motorizadas da região. Em dia de feira o vaivém é grande. De todas as vilas ribeirinhas das redondezas, e dos sítios e fazendas também, sai uma lancha dessas, levando o povo pra feira.
Alguns barcos vem carregados de mercadoria para vender. Outros ficam lotados de pessoas de todas as idades, moradores de locais isolados, pelos quais a ida à feira é um evento especial.
Descobri num livro¹, que esta feira tem tradições antigas, de quando a vila, pertencendo ainda ao município de Santana do Matos, chamava-se Caiçara.
Chegou uma canoa a motor, carregando outra menor, emborcada e atravessada, mais duas grandes caixas de isopor, cheias de peixe. Cinco minutos depois, chegou o caminhão da peixaria e eu aproveitei para ir de carona na caçamba.
Quando chegamos, o peixe foi separado por espécie e tamanho, depois pesado. O dono da peixaria anotou num caderno as quantidades de peixe numa página que levava em alto o nome do pescador. A filha do dono da peixaria chegou, oferecendo um cafezinho para todos os presentes.
Tomado o café, agradeci por tudo e me despedi.
"Está indo pra feira, italiano?", perguntou o pescador, acrescentando logo: "Me espera, que eu vou também".
Caminhamos a passo rápido até a praça da feira, conversando sobre a chuva do dia anterior. A chuva é um tema recorrente de conversa no sertão. No inverno, ainda mais que no resto do ano.
Na esquina da praça, convidei-o para tomar uma cerveja no Bar do Calçadão, mas ele me disse que estava "proibido de beber", pela mulher e pelo medico. Despedimo-nos.
Chagas, o dono do bar, quando me viu logo veio dizer que a mulher dele tinha falado em mim, na noite anterior, cortando bem miudinhos os ingredientes da buchada. Depois me avisou que no fogo só tinha oito porções.
A buchada de carneiro, ou de bode, é uma iguaria da cozinha regional sertaneja, que precisa de muita dedicação e carinho em sua preparação. Pessoalmente, eu dou a nota 10 para a buchada da Marlene, mulher do Chagas.
Pedi para ele mandar separar uma porção para mim, com bastante "graxinha" para esquentá-la à noite pro jantar. Depois fui pra feira.
Comprei maçãs, uva e uma penca de bananas. Numa banca, alho e coentro. Em outra, batata doce, batatinha e cebola. O cominho moído na hora, na banquinha do Seu Paulo. Numa banca de queijos, fiquei dez minutos só escutando a conversa da vendedora com os clientes. Conversando e cortando, conversando e cortando. Ora queijo manteiga, ora queijo coalho. Enfim, levei meio quilo de queijo coalho e seis ovos caipiras.
Num dos mercadinhos na praça, comprei um pedacinho de carne-de-sol, duas latas de sardinhas, um pacote de café e um de bolacha.
Nutrindo a pretensão de chegar no Sítio Mutamba antes do anoitecer, me decidi a não perder muito tempo na feira. Almocei às nove horas, uma abundante porção de carneiro guisado, tomei duas xícaras de café, ajeitei as compras no bornal e outra bolsa e fui embora.
Apesar do sol estar já alto, fui caminhando até o rio numa boa, para baixar a barriga. No porto das canoas, o vaivém estava intenso. Temendo a chuva pela parte da tarde, muitos estavam se aprontando para a viagem de volta mais cedo.
Foi legal reencontrar um morador de uma região bem remota, onde tinha ido bater uns cinco antes, à procura de uma furna com inscrições rupestres. Quem tinha me levado lá foi o finado Zezinho, caçador do Sítio Mutamba, conhecedor da região palmo a palmo. o sítio onde morava esse homem estava tão longe que ele só ia pra feira uma vez por mês.
Guardei bem minhas compras e sai remando em direção ao Sítio Mutamba, por volta do meio-dia e meia, com céu azul e uma leve brisa do sudeste.
Passei perto das ruínas do antigo cemitério e avistei de longe o grande juazeiro do Campo Echo. Este ficou tão distante da ribeira, que o acesso tornou-se complicado. Cortei o canal de um largo braço secundário do rio e encostei na Ilha Grande.
O céu ficou meio cinza e uma chuva fina caiu por dez minutos. Decidi prosseguir remando encostado na ilha e cruzar para a outra margem só na última hora, onde o rio Assu dobra em seu percurso quase de noventa graus.
Mas uma chuva forte caiu bem antes disso e uma pedra semi-submersa estava à minha espera no meio do caminho.
No começo a chuva continuou fininha e, com o rio apenas encrespado pelo vento, continuei remando despreocupado.
A intensidade da chuva e do vento foi crescendo. Fiquei na dúvida se parar, ou seguir, pelo menos, até o Campo Janduí. Fiquei pensando numa caneca de café quente e me distrai. Meti a proa da canoa numa grande pedra, logo abaixo da superfície da água. A canoa bateu uma vez, duas e depois se assentou na pedra, sem querer sair do lugar. Remar para trás foi inútil. As maretas não tinham bastante força para desencalhar a canoa.
"Porra!", gritei, e sem olhar, me levantei e dei um passo para trás, segurando o remo com uma mão e procurando às cegas apoiar a outra no deck de popa.
Mais meio passo para trás e me sentei no minúsculo deck de madeira. Logo a proa levantou, descolando-se da pedra; com duas remadas me afastei dela.
"Porra!", gritei de novo, e fui remando até o Campo Janduí sem parar por baixo da chuva. Cheguei todo molhado, mas sem outros acidentes.
Atracada no pé do barranco, avistei uma canoinha verde, sinal que tinha no local pescadores arranchados ou refugiando-se da chuva.
Na margem de areia, puxei meia canoa em seco e me sentei numa pedra, esperando uma estiada para mexer nas bagagens.
Com uma rápida olhada, entendi que o dano na canoa causado pela batida na pedra era modesto e me tranquilizei. Também vi uma grande caixa de isopor, com uma pedra em cima para a tampa não voar, e entendi que os pescadores estavam arranchados.
Com o céu todo fechado, ameaçando chover por mais um pedaço, decidi não prosseguir até o Sítio Mutamba naquele dia.
Aproveitando de uma breve estiada, puxei da canoa apenas o essencial para passar a noite e, com duas viagens, levei tudo pro alto do barranco.
Me apresentei aos dois pescadores, que de antemão não conhecia, e pedi licença para me arranchar junto com eles. Logo me ofereceram um café, como bem-vindo.
Chico, paraibano de Coremas, foi morar em São Rafael há mais de dez anos. Casou, procriou e vive pescando. É ele o dono da pescaria, que paga a diária e a alimentação do ajudante. Quando o isopor fica cheio de peixe, ele liga com o celular para um cunhado que, numa canoa a motor, vem buscar o pescado e traz gelo e comida.
Nos últimos anos, popularizou-se muito, entre os pescadores da região, um motor para canoa chamado "rabeta". Isto, mais a comunicação pelo telefone celular, foram as maiores mudanças tecnológicas na pesca no Vale do Assu, depois da chegada da linha de náilon.
Gerson, o outro pescador, é um garotão de São Rafael, com vinte e poucos anos, do tipo taciturno. Tudo o contrario de Chico, que seguiu puxando conversa comigo.
Ele disse que já me viu muitas vezes remando por aí. "A gente vê essas suas canoinhas a uma légua de distancia. Elas ficam como fossem brilhando, de longe". Aí, eu contei que estava indo pro Sítio Mutamba e que de lá ia percorrer uma trilha até uma pedra pintada. Como todos os moradores da região, quando me conhecem, os dois pescadores também me acharam meio maluco, ma eu já estou acostumado e não digo nada.
Conversando e tomando café, fui armando meu abrigo para a noite. Do lado da chuva e do vento, estiquei bem a lona até quase no chão, e do outro lado a deixei menos inclinada, feito uma varandinha. Armei a rede e, finalmente, troquei a roupa molhada por seca.
A noite foi entrando sem que a chuva parasse.
Por volta das seis horas, os dois pescadores foram, por baixo de uma chuva fina, recolher umas redes postas de manhã. Eu me propus a preparar uma boa sopa para a volta deles e pedi emprestado um caldeirão.
Simplesmente, eu inventei de utilizar a buchada da Marlene para dar sabor a uma sopa de batata e macarrão "avemaria". Eu refoguei as batatas em cubinhos na "graxinha", enquanto cortava em tiras finas o bucho que embrulhara a iguaria. Misturei tudo bem, acrescentei um tanto de água e deixei cozinhar por uma meia hora. O macarrão miudinho coloquei só na última hora, quando os pescadores chegaram. Todos nos servimos duas vezes e o garotão, guloso, raspou a panela.
Terminado de jantar, deitamos em nossas redes e dormimos. Caiu chuva a noite inteira, variando de intensidade, ma sem parar.


¹ "Nomes da terra" de Luis da Câmara Cascudo

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