sábado, 24 de março de 2012

Indígenas do Rio Grande do Norte: uma longa história de resistência


por Jussara Galhardo Aguirres Guerra*

Durante parte dos séculos XVII e XVIII aconteceu no RN, uma das maiores resistências indígenas do país que recebeu o nome de “Guerra dos Bárbaros”, ou Guerra do Açu, por ter sido o seu epicentro a região do Açu e que depois se expandiu por vários estados do nordeste. Por mais de quarenta anos, diversas lideranças indígenas lutaram pela terra, investindo contra o avanço colonial. Seus heróis anônimos: Janduí, Canindé, Antônio Paraupaba, Pedro Poti entre outros, não são lembrados, nem agraciados em sua bravura pelos livros de história. Os “negros da terra” (denominação utilizada pelos lusitanos para se referirem aos nativos aqui encontrados) passaram por um longo processo de miscigenação que fora imposto pelo rei de Portugal como forma estratégica de desocupação da terra e de limpeza étnica. A concepção era a de que não sendo mais “índios puros”, não tinham mais direitos às terras originais, sendo estas colocadas à disposição do projeto de expansão colonial.
Aliados a todo esse avanço dos empreendimentos da Colônia e ocupação territorial, a dispersão e o confinamento dos diferentes grupos indígenas pelos aldeamentos missionários faziam parte de planos estratégicos de desocupação definitiva do espaço nativo na região, pois “limpando” a presença indígena dos antigos territórios, havia motivos suficientes para se justificar e decretar a extinção e o desaparecimento indígena. A partir do século XIX, com a criação da Lei de Terras, a situação se agravou e definitivamente não haveria mais lugar para o índio do Rio Grande do Norte. A sina que se tornou constante: as migrações, as fugas da escravidão, as perseguições. Negar as origens, através do ocultamento e da “invisibilidade”, tornou-se uma defesa, a sobrevivência mínima garantida a custa do silêncio imposto.. Dessa forma, a assertiva de que os “índios do RN desapareceram” ou que “foram extintos” encontrou sustentação político-ideológica e viabilizou o processo sistemático da tomada de terras no Estado, mais presentemente pelo latifúndio.
Outros grandes aliados nesse processo de ocupação fundiária foram os censos oficiais que, ao longo de décadas, transformaram o indígena em “pardo”, ou seja, de acordo a concepção que vigorou ( e que ainda vigora) é a de que esta categoria abarca os mestiços em geral, portanto, não havia mais indígenas, apenas “resquícios” de índios. Este era um aval indispensável para “varrer” definitivamente do mapa, a presença indígena. Esse tipo de
estratégia política ganhou vigor através de ideologias elitistas e positivistas da época, e que lamentavelmente ainda hoje, encontram eco em nossa sociedade atual. A exemplo das escolas que utilizam material didático acrítico com relação ao assunto,os docentes estão despreparados, desinformados, desatualizados com relação ao tema, resumindo-se a apresentar a seus alunos histórias quinhentistas/seiscentistas ou no máximo, ensaiam comemorações folclóricas no dia do índio. Muitas cabeças que deveriam ser pensantes continuam enclausuradas no berço esplêndido da mesmice evolucionista. Os desafios não são o seu forte, e isso muitas vezes impede de se ter uma visualização da resistência de grupos , os quais apesar das hostilizações advindas da sociedade circundante continuaram a existir, embora transformados e adaptados a novas realidades de natureza política, social e econômica do país.
Muitos grupos rurais contemporâneos se deslocaram dos antigos aldeamentos que se transformaram em vilas no RN, como também migraram, fugindo da escravidão imposta pelo colonizador. Algumas comunidades rurais investigadas até o momento, nos informam através da oralidade, sobre esses acontecimentos. Referências bibliográficas locais, muitas vezes corroboram a as narrativas desses grupos e indivíduos entrevistados. No entanto, só por meio de uma dinâmica que direcione os estudos a um ponto de partida que considere as transformações desses grupos sociais em questão, é que se tornarão possíveis certas visualizações que de forma alguma poderão ser concebidas pelo método histórico-cartesiano.
No Rio Grande do Norte, inúmeras comunidades rurais demonstram, através dos anciãos, uma memória genealógica indígena e muitas vezes, uma identidade diferenciada(ligada aos antecessores indígenas) e expressa sem receios. Os mais velhos, em sua maioria, guardam um repertório de memória do grupo e de história de vida. Narram sobre a origem, os costumes, a história e seus próprios mitos a exemplo da Mãe D´Água, de Dona Fulozinha, entre outros seres encantados que “guardam” a natureza. Percebemos que a história da “avó/bisavó índia ou a Tapuia pega a casco de cavalo” é muito recorrente pelos sertões do RN, bem como nos interiores do nordeste brasileiro. Os mais velhos sobretudo, afirmam-se como “caboclo brabo”, “tapuio”, que tem “ sangue de índio”, entre outras adjetivações e expressões que os remetem às origens desses antecessores.
Esse é o desafio: questionar a validade única e incontestável das “versões oficiais” e lançar mão dos avanços em estudos que relativizam o saber, ouvindo o “outro” que, por sua vez, passa a contar sua própria versão e a se revelar como sujeito histórico, desafiando as verdades absolutas, proferindo voz própria, a qual foi interditada e abafada pelos discursos hegemônicos por séculos e que agora flui como num desabafo, nos permitindo pensar sobre uma possível “resistência”.

e-mail: filhosol@digi.com.br
*Pesquisadora do Museu Câmara Cascudo e Departamento de Antropologia
da UFRN e Mestranda de Antropologia Cultural da UFPE.

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