segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Um dia de feira em São Rafael


Quando acordei, o céu estava já claro e se tingindo de azul. A visão das ruínas da antiga cidade de São Rafael me deixou boquiaberto por um pedaço. Durante o verão, o nível do rio devia ter baixado mais uns três metros. Chegando no escuro da noite anterior, não tinha percebido muita coisa na penumbra.
Todas as ruínas da igreja estavam à vista. O topo da torre do sino, que ficou erguido acima das águas por um quarto de século e, repentinamente, ruiu em 2010, estava de novo sob o olhar de todos. Quando a torre desmoronou, a cúpula ficou inteira, contudo toda inclinada de um lado.
Caminhei até a margem, para pegar algumas coisas na canoa, mas não resisti a tentação de nadar entre as ruínas. Com todo o cuidado para não esbarrar em obstáculos submersos, nadei até as ruínas da igreja. Dei a volta nelas, demorando-me ora num canto, ora em outro, curtindo os pormenores e as perspectivas, na silenciosa calmaria do amanhecer daquela segunda-feira.
Foi o barulho do motor de algum barquinho chegando que me trouxe de volta à realidade.
Acendi o fogo para fazer o café e comecei a desmontar o acampamento. Depois do primeiro barco, chegaram o segundo e o terceiro. São as características canoas motorizadas da região.
Em dia de feira o vaivém é grande. De todas as vilas ribeirinhas das redondezas, e dos sítios e fazendas também, sai uma lancha dessas, levando o povo pra feira. Alguns barcos vem carregados de mercadoria para vender. Outros ficam lotados de pessoas de todas as idades, moradores de locais isolados, pelos quais a ida à feira é um evento especial.
Descobri num livro de Câmara Cascudo, que esta feira tem tradições antigas, de quando a vila, pertencendo ainda ao município de Santana do Matos, chamava-se Caiçara.
Chegou uma canoa a motor, carregando outra menor, emborcada e atravessada, mais duas grandes caixas de isopor, cheias de peixe. Cinco minutos depois, chegou o caminhão da peixaria e eu aproveitei para ir de carona na caçamba.
Quando chegamos, o peixe foi separado por espécie e tamanho, depois pesado. O dono da peixaria anotou num caderno as quantidades de peixe numa página que levava em alto o nome do pescador. A filha do dono da peixaria chegou, oferecendo um cafezinho para todos os presentes.
Tomado o café, agradeci por tudo e me despedi.
"Está indo pra feira, italiano?", perguntou o pescador, acrescentando logo: "Me espera, que eu vou também".
Caminhamos a passo rápido até a praça da feira, conversando sobre a chuva do dia anterior. A chuva é um tema recorrente de conversa no sertão. No inverno, ainda mais que no resto do ano.
Na esquina da praça, convidei-o para tomar uma cerveja no Bar do Calçadão, mas ele me disse que estava "proibido de beber", pela mulher e pelo medico. Despedimo-nos.
Chagas, o dono do bar, quando me viu logo veio dizer que a mulher dele tinha falado em mim, na noite anterior, cortando bem miudinhos os ingredientes da buchada. Depois me avisou que no fogo só tinha oito porções.
A buchada de carneiro, ou de bode, é uma iguaria da cozinha regional sertaneja, que precisa de muita dedicação e carinho em sua preparação. Pessoalmente, eu dou a nota 10 para a buchada da Marlene, mulher do Chagas.
Pedi para ele mandar separar uma porção para mim, com bastante "graxinha" para esquentá-la à noite pro jantar. Depois fui pra feira.
Comprei maçãs, uva e uma penca de bananas. Numa banca, alho e coentro. Em outra, batata doce, batatinha e cebola. O cominho moído na hora, na banquinha do Seu Paulo.
Numa banca de queijos, fiquei dez minutos só escutando a conversa da vendedora com os clientes. Conversando e cortando, conversando e cortando. Ora queijo manteiga, ora queijo coalho. Enfim, levei meio quilo de queijo coalho e seis ovos caipiras.
Num dos mercadinhos na praça, comprei um pedacinho de carne-de-sol, duas latas de sardinhas, um pacote de café e um de bolacha.
Nutrindo a pretensão de chegar no Sítio Mutamba antes do anoitecer, me decidi a não perder muito tempo na feira.
Almocei às nove horas, uma abundante porção de carneiro guisado, tomei duas xícaras de café, ajeitei as compras no bornal e outra bolsa e fui embora.
Apesar do sol estar já alto, fui caminhando até o rio numa boa, para baixar a barriga. No porto das canoas, o vaivém estava intenso. Temendo a chuva pela parte da tarde, muitos estavam se aprontando para a viagem de volta mais cedo.
Guardei bem minhas compras e sai remando em direção ao Sítio Mutamba, por volta do meiodia e meia, com céu azul e uma leve brisa do sudeste.

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