Quando acordei, o céu estava já claro e se tingindo de azul. A visão
das ruínas da antiga cidade de São Rafael me deixou boquiaberto por um
pedaço. Durante o verão, o nível do rio devia ter baixado mais uns três
metros. Chegando no escuro da noite anterior, não tinha percebido muita
coisa na penumbra.
Todas as ruínas da igreja estavam à vista. O
topo da torre do sino, que ficou erguido acima das águas por um quarto
de século e, repentinamente, ruiu em 2010, estava de novo sob o olhar de
todos. Quando a torre desmoronou, a cúpula ficou inteira, contudo toda
inclinada de um lado.
Caminhei até a margem, para pegar algumas
coisas na canoa, mas não resisti a tentação de nadar entre as ruínas.
Com todo o cuidado para não esbarrar em obstáculos submersos, nadei até
as ruínas da igreja. Dei a volta nelas, demorando-me ora num canto, ora
em outro, curtindo os pormenores e as perspectivas, na silenciosa
calmaria do amanhecer daquela segunda-feira.
Foi o barulho do motor de algum barquinho chegando que me trouxe de volta à realidade.
Acendi
o fogo para fazer o café e comecei a desmontar o acampamento. Depois do
primeiro barco, chegaram o segundo e o terceiro. São as características
canoas motorizadas da região.
Em dia de feira o vaivém é grande.
De todas as vilas ribeirinhas das redondezas, e dos sítios e fazendas
também, sai uma lancha dessas, levando o povo pra feira. Alguns barcos
vem carregados de mercadoria para vender. Outros ficam lotados de
pessoas de todas as idades, moradores de locais isolados, pelos quais a
ida à feira é um evento especial.
Descobri num livro de Câmara
Cascudo, que esta feira tem tradições antigas, de quando a vila,
pertencendo ainda ao município de Santana do Matos, chamava-se Caiçara.
Chegou
uma canoa a motor, carregando outra menor, emborcada e atravessada,
mais duas grandes caixas de isopor, cheias de peixe. Cinco minutos
depois, chegou o caminhão da peixaria e eu aproveitei para ir de carona
na caçamba.
Quando chegamos, o peixe foi separado por espécie e
tamanho, depois pesado. O dono da peixaria anotou num caderno as
quantidades de peixe numa página que levava em alto o nome do pescador. A
filha do dono da peixaria chegou, oferecendo um cafezinho para todos os
presentes.
Tomado o café, agradeci por tudo e me despedi.
"Está indo pra feira, italiano?", perguntou o pescador, acrescentando logo: "Me espera, que eu vou também".
Caminhamos
a passo rápido até a praça da feira, conversando sobre a chuva do dia
anterior. A chuva é um tema recorrente de conversa no sertão. No
inverno, ainda mais que no resto do ano.
Na esquina da praça,
convidei-o para tomar uma cerveja no Bar do Calçadão, mas ele me disse
que estava "proibido de beber", pela mulher e pelo medico.
Despedimo-nos.
Chagas, o dono do bar, quando me viu logo veio
dizer que a mulher dele tinha falado em mim, na noite anterior, cortando
bem miudinhos os ingredientes da buchada. Depois me avisou que no fogo
só tinha oito porções.
A buchada de carneiro, ou de bode, é uma
iguaria da cozinha regional sertaneja, que precisa de muita dedicação e
carinho em sua preparação. Pessoalmente, eu dou a nota 10 para a buchada
da Marlene, mulher do Chagas.
Pedi para ele mandar separar uma
porção para mim, com bastante "graxinha" para esquentá-la à noite pro
jantar. Depois fui pra feira.
Comprei maçãs, uva e uma penca de
bananas. Numa banca, alho e coentro. Em outra, batata doce, batatinha e
cebola. O cominho moído na hora, na banquinha do Seu Paulo.
Numa
banca de queijos, fiquei dez minutos só escutando a conversa da
vendedora com os clientes. Conversando e cortando, conversando e
cortando. Ora queijo manteiga, ora queijo coalho. Enfim, levei meio
quilo de queijo coalho e seis ovos caipiras.
Num dos mercadinhos na praça, comprei um pedacinho de carne-de-sol, duas latas de sardinhas, um pacote de café e um de bolacha.
Nutrindo a pretensão de chegar no Sítio Mutamba antes do anoitecer, me decidi a não perder muito tempo na feira.
Almocei
às nove horas, uma abundante porção de carneiro guisado, tomei duas
xícaras de café, ajeitei as compras no bornal e outra bolsa e fui
embora.
Apesar do sol estar já alto, fui caminhando até o rio numa
boa, para baixar a barriga. No porto das canoas, o vaivém estava
intenso. Temendo a chuva pela parte da tarde, muitos estavam se
aprontando para a viagem de volta mais cedo.
Guardei bem minhas
compras e sai remando em direção ao Sítio Mutamba, por volta do meiodia e
meia, com céu azul e uma leve brisa do sudeste.
Nenhum comentário:
Postar um comentário