quinta-feira, 23 de abril de 2015

Exp. Itacoatiara - Março de 2015 - Parte #4


Exp. ITACOATIARA - Março de 2015
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Parte #4

3º dia de expedição
Às 4h, o despertador do celular de Chico tocou. A musiquinha era aquela que todo o mundo conhece, da "Ligação a cobrar". Estava chovendo, praticamente sem parar, das três da tarde do dia anterior.
Com uma faxina e uma isca secas, guardadas por esse fim, Chico acendeu facilmente o fogo e colocou logo para ferver a água do café. Depois, começou a refogar no caldeirão os temperos de um feijão com carne-com-osso, que iria cozinhar lentamente e ficar pronto pro almoço.
Resmungando, o outro pescador se levantou da rede só quando sentiu o cheiro do café.
Tomado o café, já por baixo de uma chuva fininha, que prometia findar-se em breve, os dois pescadores foram pro serviço: recolher umas redes ali e colocar umas outras acolá.
No quebrar da barra, me levantei eu também. Tomei duas xícaras cheias de café quente e fui dar uma caminhada no mato. O sertão todo verde, encharcado de água depois de tanta chuva, é um espetáculo raro.
Enfim, tinha parado de chover e o céu, aos poucos, ficou todo azul. Uma multidão de passarinhos saiu voando e cantando pelos ares. Aproveitei para tirar um bocadinho de fotografias.
Tomado outro café, desmontei minhas coisas e desci para a margem. Retirei toda a carga da canoa, para pode-la emborcar no seco e consertar o dano. O rombo na fibra, com uns dez centímetros de comprimento por um de largura, tinha-se aberto por baixo da cãmara estanque de proa. Isso evitou que a canoa embarcasse muita água. Com varias camadas de silver tape, fiz um conserto resistente e à prova de água. Desvirei a canoa e coloquei toda a carga de novo no lugar.
Satisfeito, tomei banho no rio e me preparei ´para a remada até o Sítio Mutamba: vesti calças compridas, camisa de mangas compridas e chapéu de palha, para proteger-me bem dos raios solares.
Como é meu costume, voltei uma última vez para o local de acampamento, para ver se não tinha esquecido alguma coisa, ou perdido algo no meio do caminho.
Não tendo mais café pronto, me servi uma caneca cheia de caldo de feijão, uma dose de energia pura, para remar com boa vontade até o Síto Mutamba.
Retornei à canoa. Os dois pescadores tinham acabado de encostar o bote na margem e estavam logo transferindo os peixes para a caixa térmica.
Chico me viu vestir o colete salva-vidas e logo falou:
"Oxente! Tu tá já indo embora? Eu coloquei dois pedaços de carne-com-osso no feijão pra você, home!".
"Não vai dar pra mim", expliquei. "Preciso ir agora pro Sítio Mutamba, pois com as chuvas de ontem e anteontem já acumulei um dia inteiro de atraso". E acrescentei: "Muito obrigado por tudo. Foi bom lhe conhecer, pegar juntos tanta chuva num dia só. A conversa também foi muito boa. Agora que nos conhecemos, o primeiro passo para virar amigos está dado".
Empurrei toda a canoa na água e procurei minhas luvas, por baixo do banco.
"Peraí... peraí! Leva um peixe então", ele disse, e meteu a mão no isopor, puxando uma tilápia desse tamanho.
"Esse é grande demais", tive que falar. "Me dá um menorzinho, que sou só eu, sozinho".
E assim ganhei um tucunaré um pouco menor, que horas mais tarde comi ensopado. Obrigado, Chico!
Me despedi dos dois pescadores, abanando o chapéu e sai remando, apontando a canoa diretamente para outra margem, numa reta diagonal, que terminava onde o rio curva-se abruptamente pro Sul.
Ao redor dessa curva, acabou formando-se um amplo baixio, cheio de perigosos tocos de troncos de um antigo e vasto carnaubal, naquela que devia ter sido uma característica várzea, antes da construção da barragem ARG.
A presença de dezenas e dezenas de tocos semi-submersos, entre outros tantos, que se erguem acima da água, dá a mesma sensação de estar num campo minado.
Quando a bordo tem dois remadores, é responsabilidade do proeiro ficar atento com tudo o que vem pela frente, por baixo e fora da água.
Na canoagem solitária, o único remador deve redobrar os cuidados e aprimorar sua competência, para conseguir lidar prontamente com todo tipo de dificuldade. Manter alto o padrão de segurança, geralmente, permite evitar a ocorrência de acidentes graves.
Com a superfície da água apenas encrespada por uma brisa favorável, soprando do Leste, guardei meu remo habitual, puxei o remo SUP e me levantei em pé. Logo meu campo de visão ficou muito mais amplo.
Desde 2014, estou praticando a "open canoe stand up paddle", a qual nada mais quer dizer que "remada em pé na canoa".
Na onda do SUP Surf, sempre mais popular nas praias brasileiras, comecei a fazer experiencias com remos de vários comprimentos, primeiro em águas paradas e, depois, entre as marolas também. Atualmente, meu remo SUP mede 185 centímetros pelo metro e setenta que tenho de altura.
Afinal, me saí muito bem no desafio do campo minado. Avistando com considerável antecedência os tocos perigosos, deixei para trás todos os obstáculos, sem correr risco algum, em pouco mais de meia hora. Voltei a remar sentado.
Parei para tirar umas fotos entre os galhos cinzentos do esqueleto de uma grande arvore, que ficou submersa por décadas. Aproveitei para comer duas bananas e um punhado de castanhas de caju.
Remei por mais uma hora e cheguei nas proximidades do Sítio Mutamba, mas ainda muito longe da vila. Com o nível do rio tão baixo, a parede de um antigo açudeco tinha voltado à tona, formando um espelho dágua, com uns trezentos metros de largo e quinhentos de comprimento, ao qual as canoas motorizadas da vila não tinham acesso. Três delas estavam atracadas do lado de fora.
Um homem que estava pescando na ribeira, com uma vara de bambu, me disse:
"Tem uma passagem para canoas pequenas, que foi aberta ao lado da parede. Só vai vê-la quando chegar mais perto".
Assim, fui avançando com todo cuidado, naquelas águas pouco profundas e cheias de pedras, até a parede do açudeco. Dobrei para esquerda e, enfim, vi a passagem estreita e sinuosa, que dava acesso ao espelho dágua. Com duas manobras consegui passar pro outro lado e seguir até o local onde estavam atracadas umas tantas canoas à remo.
Na sombra da latada, estava sentado o Velho Tomaso, fumando um cigarro fedorento, de uma marca desconhecidas, dessas que se encontram à venda só nas feiras interioranas. Ele me ensinou um caminho novo para chegar a pé até o Campo Mocó, sem precisar dar toda a volta em canoa.
Tentei me organizar para levar minhas coisas até o local do acampamento em apenas duas viagens, mas não consegui e tive que ir e voltar tr~es vezes.
Emborquei a canoa no seco e guardei os garrafões de água, os remos e outra tralha, por baixo dela.
Temendo chuva pela parte da tarde ou à noite, escolhi um grupo de três arvores de porte médio para armar a lona azul em modo que minha rede e a cozinha de campo ficassem enxutas em caso de mau tempo.
Arrumei quatro pedras, catei um pouco de lenha seca e acendi um fogo pequeno. Depois de um bom café, me dediquei a preparar o peixe ensopado.
Às quatro horas, fui caminhando até a vila, só para avisar meu amigo Josimar que estava acampado nas propriedades dele. Como sempre, ele me chamou para me aboletar na casa dele e, como sempre, eu declinei o convite, explicando que meu maior gosto é dormir por baixo de uma arvore, ao ar livre.
Na vendinha de Seu Gerardo, comprei um pacote de bolacha amanteigada, para levar na caminhada do dia seguinte.
Voltei pro acampamento, enquanto o Sol ia se pondo atrás da Serra das Pinturas.
Comi todo meu peixinho ensopado, servindo-me do caldo na caneca. Lavei a panela, o prato e a caneca com um pouco de água de beber, para não deixar o cheiro de peixe pairando no ar a noite inteira.
Deitei na rede, mas não dormi logo. Por volta das oito da noite, nuvens negras, carregadas de chuva, passaram no horizonte, entre relâmpagos e raios assustadores, mas mantiveram-se a distancia. Não choveu aquela noite no Campo Mocó, e eu dormi bem que só, sozinho no meio do nada, fazendo parte do tudo.

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