domingo, 6 de junho de 2021

Expedição Mutamba 2021

 

Nesta segunda quinzena de maio, aproveitando que as chuvas no sertão do RN escassearam, me lancei em duas distintas aventuras em canoa canadense na Barragem Armando Ribeiro Gonçalves – a barragem de Assu, como é popularmente nota – inclusive para comemorar que a própria tinha alcançado 60% do volume máximo.
Na primeira aventura, três dias e duas noites, remontei o afluente rio Caraú até onde deu, passando por baixo da ponte grande da RN 118 e também da antiga ponte da ferrovia Angicos-Jucurutu, bem mais baixinha, mas robustíssima.
Segui por mais uns quilômetros, até onde a água ficou rasa demais e peguei o caminho de volta. Com o sertão todo verde e tanta água, o panorama ao redor fica deslumbrante o tempo inteiro.
A experiência no rio Caraú foi tão marcante que voltando em casa, demorei apenas dois dias para planejar outra saída; nessa segunda façanha, fui passando por São Rafael e chegando até o Sítio Mutamba de Jucurutu, quatro dias e três noites, uma aventura inebriante pela harmonia com a natureza alcançada.
A seguir, umas anotações sobre a segunda aventura, em tom de relatos cotidianos.

1º dia – terça-feira

Foi uma ótima ideia deixar a canoa no córrego no dia anterior com 85% do equipamento e da tralha já carregados a bordo. Isso facilitou muito a logística na hora de zarpar.
Para encarar todo o grande lago sem vento forte contrário, saí remando do Sítio Araras às 4:45, ainda escuro, quase sem vento, apontando a proa para a Serra de Jucurutu, que de longe parece uma pirâmide.
Após algumas horas cheguei à ilha da caixa d’água, com as ruínas de um antigo povoado usadas pelos pescadores para arranchar. Descansei uma meia hora e recomecei a pagaiar em direção a São Rafael, com um vento contrário, ora fraco e ora médio. É um belo desafio para mim, mas enfrentado com toda a segurança necessária.
Com algumas breves pausas para fazer uns lanchinhos energéticos a bordo, cheguei finalmente ao Campo Echo, pouco distante da cidade de São Rafael, por volta das duas horas.
O Campo Echo, que surge por baixo de um amplo juazeiro, local muito utilizado durante as expedições IGARUANA do passado, foi um dos acampamentos que desde 2014 não deu mais para ser usado por ter ficado muito longe da margem do rio e de difícil acesso.
A última expedição que acampou lá, se não me lembro mal, foi uma “lua cheia” com Pierrôt, Betinho e Mateus, os três vindo de Pipa, em 2013.
Descarregada a tralha e montado o acampamento, fui dar uma caminhada para catar lenha. De repente, esbarrei com uma linda cobra corredeira toda enroscada nos galhos de um arbusto seco. Reconhecida-a como não perigosa (peçonhenta, mas com dentição opistóglifa) e não tendo agressividade ou medo por parte dela, demorei uns minutos observando-a. Ela me mostrou a língua; eu estava sem câmera.
Voltei ao campo, acendi o fogo, fiz um café e ainda consegui bater umas fotos do crepúsculo.
Refeição quente (e abundante) do dia: arroz da terra e feijão verde, cozidos juntos e temperados com alho, cominho e coentro.
Muriçoca braba no Campo Echo; ela ataca a pessoa por baixo, através do tecido da rede. Vesti o poncho que é grosso, me cobri com o lençol da ponta dos pés até a cabeça e dormi assim a noite inteira.

2º dia – quarta-feira

Despertei cedo, dormi mais um pouco; depois acordei de vez, mas ainda fiquei perdido por um tempo nuns devaneios no balanço da rede.
Às sete horas, preparei o café, desmontei o acampamento e às oito saí remando em direção ao Sítio Mutamba, ou melhor, primeiro para a ilha grande de São Rafael, depois até uns baixios sinalizados por um rochedo, trocando de margem numa longa diagonal. Foi nessa hora que alcancei os baixios que o vento cresceu e portanto sem perder tempo escolhi uma árvore seca no meio das águas e me apoitei; passei uma meia hora assim, beliscando uva passa com amendoim torrado e descansando.
Quando o vento baixou, continuei pagaiando até o Sítio Mutamba, segui mais para frente para dirigir-me ao Campo M, mas encontrei o acesso completamente impedido pela maciça presença do aguapé, a planta aquática invasora.
Voltei para a enseada do Sítio Mutamba à procura de um local alternativo onde acampar. Pensei no Campo Teteu, onde dormimos uma noite que tivemos um problema parecido, mas antes de chegar lá fiquei de olho vivo em outras opções.
Enquanto estava nessa procura, apareceu numa canoa motorizada um morador da vila, Bíu, que conheço desde 2008, na época de nossa primeira passagem pelo Sítio Mutamba. Ele me contou das novidades da vila e me disse que “está todo mundo bem, graças-a-deus”. Depois, como sempre, me ofereceu hospitalidade na casa dele; eu o agradeci e na mesma hora avistei um local bom onde acampar, de fácil acesso e com umas árvores boas para armar a rede. Dei uma mãozada de fumo preto para ele, que sempre está sem, e mandei minhas lembranças para amigos e conhecidos da vila.
Encostei na margem e logo identifiquei o local perfeito para a canoa passar a noite. Depois das boas chuvas, o sertão está todo verde e cheio de plantas por todo lado. Com minhas tesoura e serra de jardinagem, limpei a área onde acampar; descarreguei parte do equipamento, armei a rede e esperei o calor baixar.
Quando me deu vontade de tomar um café, fui catar lenha e acendi o fogo. Refeição quente do dia: arroz da terra com feijão verde, igual ao dia anterior, mas na última hora acrescentei na panela uma lata de atum. Comi em dois tempos, com uma horinha de distância, mas comi tudo. Acabou o feijão verde e acabou o coentro também. Lua ainda cheia no céu à noite inteira. Tirei umas fotos dela nascendo, através dos arbustos secos, já deitado na rede.

3º dia – quinta-feira

Acordei cedo, mas com preguiça. Descartei logo a possibilidade de realizar a Trilha da Pedra Lavrada, 9 + 9 km indo e voltando, que tinha vagamente inserido no programa. Assim, preparei um café e fui sentar na beira do rio, onde passei mais de uma hora no maior relax, alongado num baixo rochedo. Depois, me lembrei de tirar algumas fotos e fui buscar a câmera.
Os primeiros dois dias de aventura remontando as águas da barragem até o Sítio Mutamba foram um pouco cansativos e o ritmo do terceiro dia ficou mais tranquilo.
Preparado o segundo café, apaguei bem o fogo e desmontei o acampamento. Carregada a canoa, zarpei do Campo SM2 às onze horas, mas logo que a canoa saiu das águas protegidas, deu para reparar com a força do vento contrário. Rapidamente, encostei a canoa e me apoitei num arbusto, achando melhor esperar o vento baixar.
Às 11:30 uma segunda tentativa foi repelida pelo vento forte. O céu ficou até nublado. Ao meio-dia, não esperei mais e fui remando em direção à ilha grande de São Rafael; o vento, que tinha baixado um pouco, atrapalhou bastante no começo, mas quando saí da enseada e mudei de rumo, ficou mais fácil pra mim que fugi das beiradas e fui procurar trajetórias mais vantajosas no meio das águas.
À uma e meia, cheguei ao Campo Jota, na ilha. A área toda estava muito cheia de espinhos e daria um trabalho grande demais fazer uma poda por uma noite só de acampamento.
Voltei à canoa e de repente o vento parou. Às duas horas, saí remando devagar procurando outro lugar para acampar. De longe, avistei algumas árvores de porte médio na ponta da entrada para São Rafael e me dirigi para aquele lado. Achado um bom lugar onde fundear a canoa, logo identifiquei também o local para acampar: quatro árvores, com umas grandes pedras por baixo, úteis para fazer o fogo, sentar e apoiar coisas.
Logo que armei a rede e acendi o fogo, fiz um café e coloquei a comida para cozer: fiz pra mim um belo risotto de batatinha, cenoura, cebola, alho e atum.
Esperando ficar pronto, ainda tirei foto da Lua nascendo.

4º dia – sexta-feira

Por ter escolhido um local ventilado para armar a rede, senti um pouco de frio na madrugada e tive que vestir outro agasalho no meio da noite, mas pelo menos não fui importunado pelas muriçocas.
No meio da madrugada, no clarão lunar noturno, apareceu no acampamento um gato cinzento, à procura de algo para comer, mas se deu mal, porque eu não deixo nada assim de bobeira.
De manhã cedo, quando acordei pela primeira vez, abri um olho só e vi que a breve distância tinha uma vaca amarela me observando curiosa. Dei “bom dia” pra ela e fechei de novo o olho. Meia hora depois, chegou devagar uma manada inteira de vacas e bezerros, pastando e andando.
Caminhei um pouco por aí e reconheci o local como uma área que em 2012 apareceu de repente acima das águas quando começaram os longos anos de estiagem. Naquela época só tinha pedras, aliás tão bonitas que fiz um ensaio fotográfico B&W intitulado “Pedras de São Rafael” (videozim no iutub). Desde então, muita vegetação cresceu, inclusive as duas árvores por baixo das quais armei minha rede.
Tomado o café e desmontado o acampamento, peguei lentamente a remar em direção ao Sítio Araras, apontando primeiro a proa para a silhueta da caixa d’água na ilhota no meio do rio, e depois para a torre da comporta, no pé do paredão. É só a um quilômetro e meio de distância que se avista a pedra do elefante, que identifica a entrada pro córrego do Sítio Araras.
Neste quarto dia, o vento foi finalmente favorável ao meu roteiro e agilizou minha remada de volta para casa. Dei umas paradinhas no meio do percurso, mas sem encostar nas margens. Tentei manter o mais reto possível meu itinerário e não ziguezaguear de uma ponta para outra.
Idealmente, da entrada de São Rafael até o porto das canoas do Sítio Araras, é um percurso de aproximadamente 16km em águas paradas, que paradas nunca ficam [risada].

Observação final: fora o desafio pessoal de ir até o Sítio Mutamba contra o vento, pagaiada após pagaiada, com determinação e constância, esta viagem foi super especial para mim porque depois de alguns anos consegui novamente chegar em locais que na época da seca ficaram inalcançáveis.

Foi com o maior prazer que naveguei mais uma vez pelo grande lago artificial que o rio Assu forma a montante da barragem. Vi novamente serras e árvores, reencontrei ilhotas e rochedos, como se fôssemos velhos amigos.

Isso, garanto, é uma sensação única.

Nenhum comentário: