Quando nos reunimos, geralmente alguns dias antes de uma
expedição, para conhecer-nos e conversar sobre a aventura que iremos realizar,
tiradas todas as duvidas, descobrimos os interesses pessoais de cada um,
estabelecemos o estilo da nossa jornada e traçamos um itinerário aproximativo
da viagem.
Quase sempre, este itinerário planejado no mapa varia um
pouco durante a expedição; mas, às vezes, ele muda completamente. Foi
exatamente isto que aconteceu na ultima expedição Vale do Assu, no mês de abril
passado.
O grupo ficou formado por quatro amigos, dois casais: um
paulista e um alagoano com suas mulheres paraibanas, todos com experiência de
camping e trilhas; pela primeira vez eles iam praticar canoagem, tendo dois dos
quatro já participado de alguma breve excursão em caiaque.
Na noite anterior à nossa saída, enquanto estávamos
conversando sobre segurança e alimentação, esperando o jantar ficar pronto, recebemos
a visita de dois dos meus jovens amigos do Sítio Araras.
Mateus e João Victor, valentes guias-mirins de muitas
trilhas que percorremos juntos na região, me anunciaram que no “secret point” tinha-se formada uma
pequena queda de água, depois das boas chuvas de março e abril.
Considerado que ver uma cachoeira no sertão é um
espetáculo raro, logo decidimos inserir a caminhada até o “secret point”, que habitualmente
fica uma opção de trilha adicional, no itinerário de nossa expedição.Melhor ainda: decidimos ir lá logo na manhã
seguinte, como primeira parada da nossa aventura.
Isso mudou
radicalmente os planos anteriores. Em vez de começar nossa expedição remando
para a Itatinga ao SE, iríamos apontar as proas das canoas IGARUANA pro NO, em
direção ao sangradouro da barragem.
Com toda a tralha e as bagagens arrumadas, as canoas já
nos esperando à beira-rio, depois do jantar fomos logo dormir para acordar às
cinco da manhã e começar nossa aventura bem cedinho.
É muito importante começar uma expedição com o pé
direito, acordando cedo e zarpando sem demora do porto das canoas, depois de um
café da manhã simples, mas eficaz.
Meu ajudante nesta expedição foi Moreno, jovem pescador
do Sítio Torrões, vila de casas de taipa na outra margem do rio, município de Assu/RN.
1º dia
Acordamos cedo, mas demoramos com o café da manhã.
Levamos tralha e bagagens até as canoas e finalmente zarpamos às 6:45h. Uma
leve brisa favorável acompanhou nossa breve remada até o pé do sangradouro, na
outra margem do rio, percorrendo os pouco menos de cinco quilômetros numa hora
escassa.
Deixamos as canoas em local abrigado e saímos andando pela
trilha, vestindo nossos coletes salva-vidas, pois o lago do “secret point” é
profundo e a segurança um fator muito importante de nossas aventuras.
A trilha até o lago escondido entre altos rochedos,
embora não perigosa, é meio cansativa, mas o esforço vale a pena: o visual é
deslumbrante e o banho refrescante e revigorante.
A queda de água é pouca coisa, mesmo assim sugestiva do
alto dos seus vinte e passa metros.
O local é mágico e o silencio quebrado só pelo barulho da
água e o canto dos pássaros.
Moreno e o paulista se exibiram em vários saltos de uma
reentrância do grande maciço de pedra, que esconde esse local tão bonito da
vista dos muitos que não sabem que existe.
Os pescadores do Sítio Araras vêm aqui de vez em quando,
à tardinha, para pescar as piabas que usam como isca. Mas é uma boa caminhada
de lá pra cá, mais de uma légua. O pai de João Victor, Domingo, pescador de profissão,
chama este lugar de “O Canto das Piabas Pequenas”.
Lanchamos, tomamos mais um banho e, ainda com toda a
roupa molhada, começamos nossa caminhada de volta às canoas.
O percurso desta trilha é circular: voltar pelo caminho
de chegada é meio complicado, assim devemos subir na encosta direita do grande
rochedo e caminhar sem dificuldade pela caatinga até a parede do sangradouro.
De lá pras canoas, a trilha volta a ser a mesma de novo.
Chegamos às canoas famintos, naturalmente. Identificamos
uma arvore onde arranchar e fomos remando até lá em poucos minutos.
O almoço do primeiro dia, como é tradição, já vem pronto:
feijão verde com linguiças de frango dessa vez. Eu o cozinho de madrugada. Dez
minutos no fogo para esquentar enquanto o arroz fica pronto, prepara-se a
salada e o almoço está servido, na sombra de uma boa arvore de preferência.
Depois do almoço, o merecido descanso. Silencio. O canto
dos passarinhos. O motor de algum barco passando. Calorzinho danado no sertão
nessas horas.
Por volta das três da tarde, voltamos ao remo e às cinco
horas, enfim, chegamos à Ilha do Velho Jaime, onde em 2012 fundamos o Campo
Uirapuru, no alto do rochedo principal.
Remando mais um pouquinho fomos até um recanto abrigado
no lado sul da ilha, onde se forma uma prainha de areia grossa, cheia de
conchinhas minúsculas.
Armamos as duas barracas na areia, assistindo ao pôr do
sol, e depois subimos no alto do rochedo para arrumar o rancho. Armamos três
redes, acendemos o fogo da cozinha e também uma fogueira. Tudo tem seu lugar
nos campos que utilizamos com frequência.
Geralmente trata-se de ranchos de pescadores, que
utilizam o local de vez em quando, passando uns dias, ou as horas mais quentes
do dia, na sombra de uma arvore onde possam armar uma rede e cozinhar um rango.
Primeiro pro fogo vai o bule com a água do café... depois
tudo o resto. Para o jantar preparei uma sopa de carne com legumes, consumida
em reverente silencio. Às oito e pouco, cansados, os dois casais retiraram-se
nas barracas. A Lua, nascendo pouco antes, iluminou o caminho deles.
Boa noite.
2º dia
Acordei com o barulho dos gravetos quebrados para acender
o fogo da cozinha de campo. Moreno parece ser mesmo um bom ajudante e tem
demonstrado só boa vontade, por enquanto, desde seu batismo IGARUANA, em meados
do ano passado. Ele gosta muito da minha comida com certeza. Antes de colocar a
água do café no fogo, ele esquentou uma sobra de sopa da noite anterior e comeu
tudo diretamente na panela com quatro colheradas. Só depois, ele desceu até as
canoas para pegar nas caixas térmicas os ingredientes do café da manhã e tudo o
resto.
Tomei uma primeira xícara de café, coloquei mais um
pedaço de lenha para manter o fogo vivo e desci pra beira-rio eu também. Tomei
aquele bom banho para começar bem o dia e fiz um pouco de barulho para acordar
o pessoal nas barracas.
Quando ambas as barracas se abriram e os quatro amigos
manifestaram os primeiros sinais de vida, me considerei satisfeito e subi de
volta pro rancho para preparar o café da manhã.
Pouco depois o pessoal subiu também e veio sentar-se ao
redor de nossa mesinha de campo, cheia de comida doce e salgada.
O café da manhã IGARUANA é reforçado, meus amigos. A
gente rema, anda, sobe, desce, queima energia o dia inteiro e tem que repor
isso durante a jornada. Por isso, além das refeições principais, rolam
também uns lanches energéticos em momentos estratégicos.
Tomado o café da manhã, desmontamos o acampamento,
carregamos toda a tralha nas canoas e zarpamos da Ilha do Velho Jaime pouco
depois das sete.
Os quatro amigos são uns brincalhões e à surpresa mudaram
a composição dos tripulantes das canoas. Os dois homens saíram remando na canoa
laranja e as duas mulheres ficaram com a canoa amarela. No começo, fiquei um
pouco preocupado, mas depois vi que as duas jovens mulheres eram valentes e
determinadas, não por nada paraibanas. Com
um vento fraco soprando de SE, remontamos o rio por pouco mais de uma hora, até
um grupo de ilhotas, na maior das quais encostamos para uma breve parada.
Enquanto Renato, o paulista, e Moreno logo escalaram umas
pedras ali até o topo, para curtir o panorama, o resto do grupo preferiu tomar
primeiro um banho refrescante no rio.
Banho refrescante que, já virou hábito, tomamos completamente vestidos, considerando
que nossa roupa depois fica secando rapidinho na quentura do sertão.
Nos reunimos todos, enfim, no topo do rochedo para
apreciar a vista e tirar alguma foto.
De volta ao remo, reformadas as duplas originais em cada
canoa, fomos sem parar até a entrada de um largo braço de água, na frente de
São Rafael, sendo na margem oposta a da cidade, aos pés da Serra das
Pinturas. Na sombra de uma grande oiticica
nos arranchamos para o almoço.
A colônia local de
formigas vermelhas não foi muito com nossa cara e logo varias patrulhas de
guerrilheiras partiram pro ataque. Esta formiga
vermelha do sertão é miudinha, mas valente e sua mordida incomoda bastante
porque provoca uma dor aguda e persistente.
Para ficar aliviados dos ataques das formigas, estendemos
uma lona no chão feito um grande tapete, no centro do qual colocamos a mesinha pro almoço, cercada pelos banquinhos baixos de
couro de cabra, algumas almofadas e duas redes armadas na arvore.
Na panela de pressão, preparei sobrecoxas de frango com
batatas e pimentões. Como acompanhamento: arroz “da terra” (integral vermelho)
e salada mista.
Enquanto eu cozinhava, os quatro amigos, acompanhados por
Moreno, foram caminhando até as ruínas de uma antiga casa abandonada, pouco
distante.
Depois do almoço as duas redes ficaram muito disputadas e
acabamos armando outra. Quem na rede, quem no chão, todos nós acabamos tirando
uma soneca. Eu fingi ler um pouco, mas
acabei usando o livro como travesseiro e fiz um sonho meio maluco.
Uma chuva rápida de gotas grossas, que durou só o tempo de
acordar-nos todos, marcou nossa volta às canoas.
Com um ventinho contrario de SE, varrendo as nuvens do
céu e levantando umas marolinhas na superfície da água, fomos remando até a
Ilha Grande de São Rafael, que divide o rio em dois largos braços. Conversando,
tirando foto e contando piadas, seguimos remando até o Campo Jandui, situado no
extremo SO dessa larga porção de terra cercada por água, praticamente utilizada
apenas para criar gado bovino e caprino solto.
O Campo Jandui fica bem pertinho do antigo Campo Juá, que
deixamos de utilizar depois que o grande juazeiro, onde nos arranchávamos,
tombou num dia de forte ventania.
O Campo Jandui é apropriado para armar quantas redes e
barracas quiser: bom para acampar com um grupo maior ou quando tem mais de uma
pessoa querendo dormir como a gente, na rede em vez que na barraca.
O pôr do sol visto
do Campo Jandui é especial, com o Sol desaparecendo atrás da Serra do Meio, o
céu tingindo-se de vermelhos e laranjas, as luzes das casas do Sítio Mutamba
brilhando de longe ao crepúsculo.
Para o jantar preparei uma sopa de macarrão com
lentilhas: não sobrou nada.
Escrevi minhas anotações no “diário de bordo” deitado na
rede.
A Lua nasceu quando todo o mundo já estava dormindo.
Boa noite.
3º dia
Tem jeito melhor de ser acordado que pelo canto dos
passarinhos pulando de galho em galho na arvore por baixo da qual você está
dormindo?
Quatro e quarenta e cinco. O dia já clareou, mas o Sol
ainda não apareceu no horizonte.
Ao seu surgir, lentamente, uma ampla porção de céu ficou
da cor de ouro. Das serras Branca e Jatobá, lá no fundo, aparecem apenas as silhuetas
no horizonte.
Enquanto Moreno ficou acendendo o fogo, peguei a câmera
fotográfica e fui dar uma caminhada até o juazeiro caído, que, contudo tombado
sem graça de um lado, continua vivo, verde e bonito. Como o local não é mais
utilizado como rancho, um capim com mais de um metro de altura tomou conta do
pedaço. O orvalho abundante me molhou corpo e roupa dos pés ao peito.
Tirei umas fotos do amanhecer dourado e voltei para o
acampamento. Quem encontrei perto do fogo foi uma das duas mulheres, Jamile, se
propondo para preparar um cuscuz pro café da manhã. Confessei que não tinha
trazido a cuscuzeira, pois preparo meu cuscuz de outro jeito, mas ela não se
perturbou com isso e disse que ia utilizar um pano de prato, se tivesse um
limpo.
Assim ela colocou os flocos de milho, molhados e salgados,
num prato que cobriu com o pano limpinho; aí virou tudo com jeito e deu um nó
apertado. Enfim colocou o prato de cabeça pra baixo apoiado na borda da panela com
quatro dedos de água fervendo.
Ficou perfeito... e sem gosto de pano.
Desmontamos o acampamento, carregamos tralha e bagagens às
canoas e zarpamos em direção à Ilha Timbaúba, por volta das sete e meia. De
novo as duas mulheres saíram juntas numa canoa e seus maridos na outra, sendo
que eles trocaram de posição na canoa, pois Renato quis ser o proeiro do barco dessa
vez.
Mulheres na frente, homens atrás: as proas das canoas diretamente
apontadas para a Serra de Jucurutú, que de longe parece ser uma pirâmide.
Quando chegamos aos baixios do Sítio Mutamba, onde o rio
dobra seu curso de 90º diretamente pro Sul, prosseguimos com cuidado redobrado,
pois a área está infestada de tocos de tronco de carnaubeira, muitos dos quais
bem visíveis e outros perigosamente escondidos, de repente a um palmo por baixo
da água.
Lanche energético a bordo, no meio do rio, juntando as
três canoas uma perto da outra, apoiadas e presas pelos galhos esqueléticos de
uma grande arvore, cujo tronco fica todo por baixo da água.
Fomos remando até a ilha Timbaúba sem parar no Sítio
Mutamba. Sendo domingo, vamos tentar chegar à noite no Campo Echo, de onde fica
fácil na segunda de manhã ir pra feira de São Rafael. Não tem tempo a perder
por tanto.
Ao chegar na ilha, as duas mulheres e um dos homens, Gustavo,
o alagoano, disseram que não iam participar da trilha e subir o rochedo,
preferindo tomar um banho refrescante.
Levando água, castanha, fruta seca e meia dúzia de bananas, fomos lá
escalar o maior rochedo da ilha, só nós três: o paulista, o potiguar e o
italiano.
A trilha se adentra na ilha até as ruínas de uma antiga
casa de tijolos maciços, enegrecidos pelo tempo. De lá até o pé do alto rochedo
precisamos usar um pouco o facão para abrir caminho.
A escalada é um pouco cansativa e precisa ficar atentos
com a urtiga e os cactos espinhentos. No topo do rochedo, a vista compensa o
esforço: a panorâmica de 360º deixa sem fôlego também quem não sobe pela
primeira vez.
Carcarás curiosos ficaram voando sobre nossas cabeças.
Calorzinho danado: lanchamos, tomamos água, tiramos umas
fotos e voltamos às canoas.
Tomado um breve banho refrescante, remamos até o outro
extremo da ilha, onde existe uma velha casa abandonada, usada como rancho por
alguns pescadores locais, além da gente.
Em 2008, a artista fluminense Mirra, que participou de
uma expedição Araras-Jucurutú, pintou na base do rochedo lá, perto da casa, um
periquito verde desse tamanho, parte do seu projeto “Museu da Terra”, única das
oito pinturas realizadas durante a expedição, que sobreviveu a inclemência do
tempo.
Sendo domingo, não tinha ninguém na casa. As portas da
frente e do fundo estavam abertas. A casa é composta por dois amplos quartos,
onde dá para armar umas dez redes, e a cozinha no fundo. O piso é de terra
batida. O fogão improvisado é feito de grandes tijolos maciços em cima dos
quais se podem apoiar panelas e grelhas.
Com a mesma lona azul que usamos como tapete no dia
anterior, criamos uma área de sombra por baixo do rochedo.
Cozinhei pro almoço carne de sol assada, arroz da terra,
batata doce e abobora cozidas.
Depois do almoço, subimos no topo do rochedo, que não é
tão alto quanto o outro, mas tem boa vista também, e tomamos café e digestivo
lá em cima. Digestivo sim, pois Gustavo abriu o jogo e mostrou uma garrafa de
caninha boa da Paraíba, que carregou na bagagem para tomar numa ocasião boa.
Aproveitando de um vento propicio, às duas e meia saímos
remando em direção a São Rafael.
O vento favorável durou só uma meia hora ou pouco mais.
Com vento contrario custou um pouco chegar aos baixios e de lá cruzar para a
Ilha Grande. Mas enfim, o vento baixou e chegamos sem outras dificuldades ao
Campo Echo na hora do pôr do sol.
Este foi o dia no qual remamos mais, completando
aproximadamente 25/26 quilômetros.
Enquanto os quatro amigos e Morenos foram levantar logo
as barracas antes do crepúsculo, eu acendi o fogo e coloquei a água do café
para ferver.
O Campo Echo talvez seja o local onde mais acampamos
durante nossas aventuras. Às vezes nos acontece de parar aqui mais de uma vez
ao longo da mesma expedição. O rancho principal fica por baixo de um amplo juazeiro, onde dá para armar até três redes sem incomodar a passagem de ninguém.
Algumas grandes pedras formam mesas e bancos naturais. Logo perto da arvore,
apenas fora da copa dela, algumas pedras, encostadas em pé numa rocha maior,
constituem um fogão perfeito para preparar nossas refeições.
As barracas ficam montada num espaço plano, protegido do
vento pela mata que se engrossa no cume do morro.
O sábado não é um bom dia para dormir no Campo Echo, pois
sendo localizado não muito longe da cidade de São Rafael, é possível ficar incomodados
pelo som de algum show ao vivo ou algo parecido.
Subitamente, com a cumplicidade da escuridão chegando,
um pé de chuva nos surpreendeu tomando café na frente da fogueira.
Choveu por quase uma hora inteirinha, que esperamos
passar para começar a cozinhar. Beliscamos cubinhos de queijo com umas bolachas
salgadas, tomando mais uma caneca de café quente. Quando enfim estiou, passadas
as sete da noite, mudando rapidamente de planos, preparei em pouco menos de
quinze minutos uma macarronada com molho de tomate e sardinhas que encheu e
esquentou a barriga de todos os presentes.
As nuvens passaram e as estrelas voltaram a brilhar no
céu.
A Lua nasceu muito mais tarde. Só viu quem foi fazer xixi
de madrugada.
Boa noite.
4º dia
Segunda é dia de feira em São Rafael. Sábado tem feira no
Assu e domingo em Jucurutu. Nos anos oitenta do século passado, quando foi
construída a barragem Armando Ribeiro Gonçalves e inundado o Vale do Assu, a
cidade de São Rafael foi reconstruída inteirinha cinco quilômetros mais pra lá
de sua sede original.
Até o fim de 2010, a antiga torre da igreja surgia do
nada no meio do rio, símbolo e cartão postal da cidade; tiramos muitas fotos
passando com as canoas perto da torre durante nossas expedições. De repente, na
noite de 17 de dezembro, a torre ruiu e desapareceu na água.
Quando o rio está realmente muito seco, como foi ficando
nos últimos dois anos, precisamos remar com cuidado entre as ruínas da antiga
São Rafael, que ficam à tona, sendo que da torre da igreja só ficou em pé um
toquinho.
Do Campo Echo dá para ver o atual porto das canoas de São
Rafael, onde no dia de feira o vaivém de barcos motorizados, trazendo e
levando de volta os moradores das casas e vilas ribeirinhas da região, é
grande.
Como todo o mundo estava ainda dormindo, pensei em filmar
os barcos indo e chegando, assim pequei o tripé, a câmera, um banquinho e
fiquei acompanhando a movimentação: de um lado canoas e barcos, do outro:
carros, motos e também um caminhão, que vai e vem carregando todo o mundo na
caçamba por dois reais à cabeça.
De manhã cedo e à tarde são os momentos melhores para
tirar fotografias e filmar boas imagens neste ecossistema único ao Mundo: a
caatinga, típica do sertão nordestino e brasileiríssima.
Com um bom binóculo, o bird-watching não tem limites. Um
zoom legal na câmera fotográfica permite trazer pra casa umas boas lembranças
da fauna local.
Deixei a câmera filmando sozinha no tripé e fui acender o
fogo para colocar a água do café a esquentar.
Com o almoço regional na feira por volta das dez e meia,
não precisa preparar um café da manhã reforçado na segunda: pode ser normal.
Café, leite, pão, queijo, ovos mexidos e fruta.
Quando quebrei o primeiro graveto, Moreno acordou e meio
minuto depois já estava em pé, dobrando sua rede bocejando.
No Campo Echo não precisa montar a mesinha para o café da
manhã. Duas largas pedras planas oferecem uma superfície de apoio ampla e na
altura certa para pratos, canecas, bandejas, panelas etc...
Quando o barco de Severino, que vai e vem do Sítio
Mutamba, passou na nossa frente, acenando com o braço, pedi pra ele tocar a
buzina...
OOOOOOOONK!!!
OOOOOOOONK!!!
Menos de meio minuto depois, o zíper da primeira barraca
anunciou sinais de vida vindo da Área VIP.
Tomado o café da manhã, em dez minutos fomos remando até
o local onde o caminhão carrega e descarrega pessoas e mercadorias. Amarramos
as canoas no tronco de uma arvore à beira-rio e carregamos nas mochilas só o
necessário para dar um passeio na cidade em dia de feira.
Uma camioneta branca apareceu, carregada de sacos e sacos
de ração, com três pessoas em cima dos sacos. Em dez minutos, os três homens
descarregaram toda a carga e nos fomos para São Rafael na caçamba da camioneta,
cujo motorista logo me passou o numero de celular dele para garantir-se a
viagem de volta.
A feira de São Rafael já não é mais como uma vez, mas
continua característica e sugestiva. O
plástico invadiu o Planeta inteiro e fica difícil encontrar um lugar que esteja
livre disso.
Por baixo de uma
grande cobertura toda aberta nas laterais, ficam principalmente as
bancas de frutas e verduras, os grãos e os outros alimentos: os queijos
típicos, coalho e manteiga, o frango recém abatido, o peixe, todo tipo de abóbora.
Bem pequenina, encostada num poste de ferro, está a banquinha do seu Fausto, que vende raízes e
mel de quatro tipos de abelha diferente, prepara garrafada para todo mal e só
não tem remédio para a morte. Joana logo comprou três litros de mel, mais uma
garrafinha menor com mel de jandaíra.
No resto da praça, tem banca vendendo qualquer coisa:
redes de São Bento e Jardins de Piranhas, roupas novas e usadas, panelas de
alumínio de todos os tamanhos, peças de bicicleta, ferramentas, os
característicos produtos utilitários sertanejos, feitos de couro: das bainhas
de facas, passando por vários modelos de alpercatas, todos os arreios e outros
acessórios do fazendeiro, até os
característicos banquinhos de todo tamanho, de couro de vaca, se for no estilo
de Caicó, ou de cabra, se for do assuense.
Bem no meio da cobertura fica a área de alimentação, onde
a comida é preparada em grandes panelas sobre fogões feitos com latas cheias de
carvão em brasa. É comida popular feita
ao gosto do povo. Tem carneiro, bode, galinha, peixe, carne na panela e assada.
Tem buchada para quem gosta, feito eu. Tem
feijão verde e preto: pode escolher ou comer os dois. E vêm também: batata
doce, jerimum, arroz, vinagrete, farofa e, para beber, suco de fruta.
Sentamos um ao lado do outro numa das pernas de uma
grande “U”, feita de mesas cobertas por toalhas de plástico com estampa floral.
Na feira comprei fruta e verdura frescas. No prédio do
mercado das carnes, única construção no meio da praça, comprei carne-de-sol e
frango. Procurei pelo vendedor de chapéus de palha de carnaúba, mas não o
encontrei. A palha de carnaúba é muito
resistente e aguenta firme quando molhada:
o chapéu oficial IGARUANA, usado durante nossas expedições, é de palha
de carnaúba. Para não perde-lo, quando o vento sopra mais forte, é fundamental
um laço apertado por baixo do queixo.
Na loja de seu Reginaldo, comprei dez mechas novas para
as lamparinas à óleo que usamos nas noites escuras. Ali vende também chapéus de
palha, mas não de carnaúba.
Na banca de queijos ao lado do armazém na esquina,
experimentei três tipos diferentes de queijo coalho, antes de decidir-me. Gostei muito também, só de ver, de um queijo
manteiga artesanal, produto local, e comprei só um pedacinho para a galerinha
experimentar.
Delicioso, ele derrete na boca, mas é gorduroso pra
caramba.
Para quem gosta de refrescar-se e hidratar o corpo
tomando uma cerveja gelada no dia da feira, o local apropriado é o Bar do
Calçadão.
Ali você pode levar seu tira-gosto e assá-lo numas
churrasqueiras feitas de aro de pneu de carro, que ficam no quintal do bar, na
sombra de uns imbuzeiros. O povo compra sua carne, seu peixe, frango, linguiça
e assa nas churrasqueiras; se quiser arroz e feijão, para bater um rango mesmo,
ali tem.
Em dias abençoados, a gente pode ter a sorte de assistir
à exibição de algum violeiro local. Em época de vaquejadas, tem muitos músicos
acompanhando os eventos de uma cidade para outra.
Agora que falei em vaquejada, me lembrei duma vez que, almoçando na feira, conhecemos
uma dupla sertaneja vinda de Goiás, formada pelo pai e o filho,
respectivamente, violeiro e sanfoneiro. Gente finíssima, eles trajavam as
roupas típicas de vaqueiro e viajavam pelo Brasil em duas motocicletas
customizadas, verdadeiros “cavalos-de-ferro”.
Estavam rodando o Nordeste há mais de seis meses,
exibindo-se ao vivo, e também participando mesmo dos rodeios, nas vaquejadas
que fossem pintando: livres como passarinhos.
Não chegamos a escutá-los tocar e cantar, pois naquela
hora, os únicos instrumentos a ser usados foram garfos, facas e colheres.
No Bar do Calçadão, já somos os queridinhos. Desde 2008,
levamos para conhecer o Vale do Assu e a feira de São Rafael pessoas de varias
nacionalidades, quase de todos os continentes; a curiosidade e a maravilha do
sertanejo ao conhecê-las, são tão grandes quanto aquelas dos turistas que
descobrem o Brasil autentico, afastando-se das cidades do litoral.
Lá dos fundos, logo vem um prato com carne assada, toda
picadinha: cortesia da galera do Sitio Mutamba, aboletada por baixo do
imbuzeiro maior. Fui lá agradecer e
cumprimentar: muitos deles não conheço pelo nome, mas só por um sorriso ou um
aceno de braços trocado de uma canoa para outra.
A curiosidade do povo não foi tanta dessa vez, quando
souberam que estava viajando com quatro brasileiros, mas a cortesia e a
simpatia foram as mesmas.
Enfim, por volta da uma da tarde, fomos embora, passando
pela fabrica de gelo, antes de voltar às canoas: meia barra de gelo é
suficiente para os últimos dois dias de expedição.
Barriga cheia, pé no mundo; haja vontade de remar depois
desse almoço regional!
Na sombra de uma oiticica, preparamos um café forte e
gostoso e enfim zarpamos do porto das canoas de São Rafael.
Fomos remando sem
parar até a Ilha da Caixa d’Água, onde descansamos um pedaço, lanchamos e
tomamos banho. Dobrando logo a direita,
remamos por mais seis quilômetros até chegar ao Campo Alfa, na foz do rio
Caraú.
Como deixa entender o nome, o Campo Alfa foi o primeiro
acampamento que fundamos em 2008, na época de nossas primeiras expedições no
Vale do Assu. Rancho de pescadores, o Campo Alfa fica numa ponta da Ilha das
Cabras: tem uma área de sombra ampla, contudo não muito alta, e fogareiro
natural de primeira. Para montar as barracas, uma área plana de areia fina:
perfeito.
No quarto dia de expedição, a galerinha estava sentindo
um pouco do cansaço acumulado durante nossas aventuras. As duas mulheres
ameaçaram ir dormir sem jantar.
Logo preparei, na frigideira wok de ferro, o peito de frango em
cubos ao curry, com batata e cebola, que servi sem arroz. Feitos os pratos,
refoguei uma farofinha no fundo da panela com farinha de mandioca amarela.
Depois do jantar, eu ainda tomei um café olhando as
estrelas no céu. Quando me dei conta, reparei que era o único ainda acordado.
Boa noite.
5º dia
Na madrugada do quinto dia, choveu um pouquinho. Nem me levantei da rede; em dez minutos
passou. Quando abri de novo os olhos, já estava amanhecendo.
O Sol apareceu soberano, tingindo tudo de um tom
alaranjado. Fui pro rio tomar um bom banho. Deixei todo mundo dormir até ás
seis: o próprio Moreno, quando viu que não estávamos com pressa, acendeu o fogo
e voltou pra rede cochilar um pouco.
Depois do café da manhã, desmontamos o acampamento,
carregamos bagagens e tralha nas canoas e saímos remando pro Leste, remontando
o rio Caraú.
Com céu nublado e um ventinho contrário refrescando a
manhã, subimos o rio sinuoso até onde deu. De repente, a profundidade do rio foi diminuindo,
diminuindo até que as canoas ficaram atoladas no fundo de barro escuro. Uma
revoada de garças passou por cima de nossas cabeças grasnando. O céu já não
estava mais nublado.
Lentamente voltamos por um meio quilometro até encontrar
um pescador em sua canoinha. Perguntei se tinha peixe pra vender e ele
respondeu que sim. Escolhi um tucunaré grande e duas tilápias entre o pescado
dele e transferimos os peixes pra nossa caixa térmica.
Remamos mais um meio quilometro até encontrar a arvore
perfeita para arranchar. Encostamos as canoas na beirada e nos jogamos no rio
para refrescar-nos.
Uma canoa carregada com um montão de capim, leve mas
volumoso, passo na nossa frente. Na estiagem, agricultores e criadores de gado costumam
semear e plantar à vazante, aproveitando do solo fértil e molhado da beira-rio.
É bom lembrar-se,
ao sair por uma aventura dessas, que peixe assado na brasa fica melhor se for
envolto em folha de bananeira ou papel alumínio. Se desconfiar que possa ser
difícil arranjar uma ou mais folhas de bananeira no meio do sertão, é bom não
se esquecer de carregar um rolo de papel alumínio.
Além de temperar o peixe, eu coloco no embrulho, que
depois fecho com todo cuidado, também batatas, cebolas e cenouras fatiadas: isso gera um intercambio de sabores muito interessante. Pode servir
com arroz branco.
No último dia dessa expedição, não durou muito o descanso
depois do almoço: uma meia hora depois, de volta ao remo, acompanhamos outra
margem do rio até os pés da Itatinga, o alto rochedo onde geralmente paramos no
primeiro dia de aventura.
Itatinga quer dizer em Tupi “pedra branca”, mas não é o
que parece no momento. Com as boas chuvas deste ano, o rochedo estava tudo
verde, pelas copas das arvores e outras plantas, que cresceram por todo lado.
Desta vez, para a escalada do rochedo foi todo mundo. A
trilha é mais fácil que aquela da Timbaúba, mas, minha gente, olho na urtiga e
no xique-xique, que não perdoam!
Calcular uma boa margem de distancia é fundamental. Os
espinhos de xique-xique seco ficam se espalhando por aí e tem que ficar de
olhos abertos para não pisa-los. Chinelo
não aguenta: o espinho passa a borracha e fura o couro da gente. Melhor é calçar
um par de tênis ou umas botas para trilhas mesmo, quem tiver.
No topo da Itatinga, lá vem de novo o Gustavo com sua
garrafa de caninha, para comemorar. Que figura, hein?! Bom, pelo menos, ele só
toma “nas alturas”... rsrsrs.
Mas, enfim, estamos no topo da Itatinga; a vista
panorâmica deixa alguns sem palavras e leva outros a falar até besteira; os
abraços de amigos-para-sempre, a sensação de ser livre e outras emoções fortes tomaram
conta do momento.
Se alguém chorou, eu não me lembro.
“Não, não podemos esperar até o pôr do sol no topo da
Itatinga, meus amigos”.
Segurança em primeiro lugar.
“Bora, galera! Vamos descendo com todo cuidado, que onde
foi fácil subir, pode ser difícil descer, não é verdade?”.
De volta às canoas, aquele lanchinho especial para
ficar cheios de energia e remar com boa vontade até o Sítio Araras.
O Sol desceu atrás da Serra das Pinturas, à nossa
esquerda, com a mesma indolente preguiça com a qual nós fomos remando e
conversando, contando piadas e vantagens, até o porto das canoas.
Quando chegamos à base, enfim, no outro lado do céu, as
estrelas começavam a brilhar.
Ainda deu para fazer quatro viagens carregando toda a
tralha pra casa.
As três canoas ficaram dormindo mais uma noite ao ar
livre, virada para baixo, como dita a tradição.
A Lua brilhou no céu só muito mais tarde.
Alguém viu?