terça-feira, 20 de maio de 2014

Um itinerário diferente


Quando nos reunimos, geralmente alguns dias antes de uma expedição, para conhecer-nos e conversar sobre a aventura que iremos realizar, tiradas todas as duvidas, descobrimos os interesses pessoais de cada um, estabelecemos o estilo da nossa jornada e traçamos um itinerário aproximativo da viagem.
Quase sempre, este itinerário planejado no mapa varia um pouco durante a expedição; mas, às vezes, ele muda completamente. Foi exatamente isto que aconteceu na ultima expedição Vale do Assu, no mês de abril passado.
O grupo ficou formado por quatro amigos, dois casais: um paulista e um alagoano com suas mulheres paraibanas, todos com experiência de camping e trilhas; pela primeira vez eles iam praticar canoagem, tendo dois dos quatro já participado de alguma breve excursão em caiaque.
Na noite anterior à nossa saída, enquanto estávamos conversando sobre segurança e alimentação, esperando o jantar ficar pronto, recebemos a visita de dois dos meus jovens amigos do Sítio Araras.
Mateus e João Victor, valentes guias-mirins de muitas trilhas que percorremos juntos na região, me anunciaram que  no “secret point” tinha-se formada uma pequena queda de água, depois das boas chuvas de março e abril.
Considerado que ver uma cachoeira no sertão é um espetáculo raro, logo decidimos inserir a caminhada até o “secret point”, que habitualmente fica uma opção de trilha adicional, no itinerário de nossa expedição.Melhor ainda: decidimos ir lá logo na manhã seguinte, como primeira parada da nossa aventura.
Isso mudou radicalmente os planos anteriores. Em vez de começar nossa expedição remando para a Itatinga ao SE, iríamos apontar as proas das canoas IGARUANA pro NO, em direção ao sangradouro da barragem.
Com toda a tralha e as bagagens arrumadas, as canoas já nos esperando à beira-rio, depois do jantar fomos logo dormir para acordar às cinco da manhã e começar nossa aventura bem cedinho.
É muito importante começar uma expedição com o pé direito, acordando cedo e zarpando sem demora do porto das canoas, depois de um café da manhã simples, mas eficaz.
Meu ajudante nesta expedição foi Moreno, jovem pescador do Sítio Torrões, vila de casas de taipa na outra margem do rio, município de Assu/RN.


1º dia

Acordamos cedo, mas demoramos com o café da manhã. Levamos tralha e bagagens até as canoas e finalmente zarpamos às 6:45h. Uma leve brisa favorável acompanhou nossa breve remada até o pé do sangradouro, na outra margem do rio, percorrendo os pouco menos de cinco quilômetros numa hora escassa.
Deixamos as canoas em local abrigado e saímos andando pela trilha, vestindo nossos coletes salva-vidas, pois o lago do “secret point” é profundo e a segurança um fator muito importante de nossas aventuras.
A trilha até o lago escondido entre altos rochedos, embora não perigosa, é meio cansativa, mas o esforço vale a pena: o visual é deslumbrante e o banho refrescante e revigorante.
A queda de água é pouca coisa, mesmo assim sugestiva do alto dos seus vinte e passa metros.
O local é mágico e o silencio quebrado só pelo barulho da água e o canto dos pássaros.
Moreno e o paulista se exibiram em vários saltos de uma reentrância do grande maciço de pedra, que esconde esse local tão bonito da vista dos muitos que não sabem que existe.
Os pescadores do Sítio Araras vêm aqui de vez em quando, à tardinha, para pescar as piabas que usam como isca. Mas é uma boa caminhada de lá pra cá, mais de uma légua. O pai de João Victor, Domingo, pescador de profissão, chama este lugar de “O Canto das Piabas Pequenas”.
Lanchamos, tomamos mais um banho e, ainda com toda a roupa molhada, começamos nossa caminhada de volta às canoas.
O percurso desta trilha é circular: voltar pelo caminho de chegada é meio complicado, assim devemos subir na encosta direita do grande rochedo e caminhar sem dificuldade pela caatinga até a parede do sangradouro. De lá pras canoas, a trilha volta a ser a mesma de novo.
Chegamos às canoas famintos, naturalmente. Identificamos uma arvore onde arranchar e fomos remando até lá em poucos minutos.
O almoço do primeiro dia, como é tradição, já vem pronto: feijão verde com linguiças de frango dessa vez. Eu o cozinho de madrugada. Dez minutos no fogo para esquentar enquanto o arroz fica pronto, prepara-se a salada e o almoço está servido, na sombra de uma boa arvore de preferência.
Depois do almoço, o merecido descanso. Silencio. O canto dos passarinhos. O motor de algum barco passando. Calorzinho danado no sertão nessas horas.
Por volta das três da tarde, voltamos ao remo e às cinco horas, enfim, chegamos à Ilha do Velho Jaime, onde em 2012 fundamos o Campo Uirapuru, no alto do rochedo principal.
Remando mais um pouquinho fomos até um recanto abrigado no lado sul da ilha, onde se forma uma prainha de areia grossa, cheia de conchinhas minúsculas.
Armamos as duas barracas na areia, assistindo ao pôr do sol, e depois subimos no alto do rochedo para arrumar o rancho. Armamos três redes, acendemos o fogo da cozinha e também uma fogueira. Tudo tem seu lugar nos campos que utilizamos com frequência. 
Geralmente trata-se de ranchos de pescadores, que utilizam o local de vez em quando, passando uns dias, ou as horas mais quentes do dia, na sombra de uma arvore onde possam armar uma rede e cozinhar um rango.
Primeiro pro fogo vai o bule com a água do café... depois tudo o resto. Para o jantar preparei uma sopa de carne com legumes, consumida em reverente silencio. Às oito e pouco, cansados, os dois casais retiraram-se nas barracas. A Lua, nascendo pouco antes, iluminou o caminho deles.
Boa noite.



2º dia

Acordei com o barulho dos gravetos quebrados para acender o fogo da cozinha de campo. Moreno parece ser mesmo um bom ajudante e tem demonstrado só boa vontade, por enquanto, desde seu batismo IGARUANA, em meados do ano passado. Ele gosta muito da minha comida com certeza. Antes de colocar a água do café no fogo, ele esquentou uma sobra de sopa da noite anterior e comeu tudo diretamente na panela com quatro colheradas. Só depois, ele desceu até as canoas para pegar nas caixas térmicas os ingredientes do café da manhã e tudo o resto.
Tomei uma primeira xícara de café, coloquei mais um pedaço de lenha para manter o fogo vivo e desci pra beira-rio eu também. Tomei aquele bom banho para começar bem o dia e fiz um pouco de barulho para acordar o pessoal nas barracas.
Quando ambas as barracas se abriram e os quatro amigos manifestaram os primeiros sinais de vida, me considerei satisfeito e subi de volta pro rancho para preparar o café da manhã.
Pouco depois o pessoal subiu também e veio sentar-se ao redor de nossa mesinha de campo, cheia de comida doce e salgada.
O café da manhã IGARUANA é reforçado, meus amigos. A gente rema, anda, sobe, desce, queima energia o dia inteiro e tem que repor isso durante a jornada.   Por isso, além das refeições principais, rolam também uns lanches energéticos em momentos estratégicos.
Tomado o café da manhã, desmontamos o acampamento, carregamos toda a tralha nas canoas e zarpamos da Ilha do Velho Jaime pouco depois das sete.
Os quatro amigos são uns brincalhões e à surpresa mudaram a composição dos tripulantes das canoas. Os dois homens saíram remando na canoa laranja e as duas mulheres ficaram com a canoa amarela. No começo, fiquei um pouco preocupado, mas depois vi que as duas jovens mulheres eram valentes e determinadas, não por nada paraibanas.  Com um vento fraco soprando de SE, remontamos o rio por pouco mais de uma hora, até um grupo de ilhotas, na maior das quais encostamos para uma breve parada.
Enquanto Renato, o paulista, e Moreno logo escalaram umas pedras ali até o topo, para curtir o panorama, o resto do grupo preferiu tomar primeiro um banho refrescante no rio.  Banho refrescante que, já virou hábito, tomamos completamente vestidos, considerando que nossa roupa depois fica secando rapidinho na quentura do sertão.
Nos reunimos todos, enfim, no topo do rochedo para apreciar a vista e tirar alguma foto.
De volta ao remo, reformadas as duplas originais em cada canoa, fomos sem parar até a entrada de um largo braço de água, na frente de São Rafael, sendo na margem oposta a da cidade, aos pés da Serra das Pinturas.  Na sombra de uma grande oiticica nos arranchamos para o almoço.
 A colônia local de formigas vermelhas não foi muito com nossa cara e logo varias patrulhas de guerrilheiras partiram pro ataque.  Esta formiga vermelha do sertão é miudinha, mas valente e sua mordida incomoda bastante porque provoca uma dor aguda e persistente.
Para ficar aliviados dos ataques das formigas, estendemos uma lona no chão feito um grande tapete, no centro do qual colocamos a mesinha  pro almoço, cercada pelos banquinhos baixos de couro de cabra, algumas almofadas e duas redes armadas na arvore.
Na panela de pressão, preparei sobrecoxas de frango com batatas e pimentões. Como acompanhamento: arroz “da terra” (integral vermelho) e salada mista.
Enquanto eu cozinhava, os quatro amigos, acompanhados por Moreno, foram caminhando até as ruínas de uma antiga casa abandonada, pouco distante.
Depois do almoço as duas redes ficaram muito disputadas e acabamos armando outra. Quem na rede, quem no chão, todos nós acabamos tirando uma soneca.  Eu fingi ler um pouco, mas acabei usando o livro como travesseiro e fiz um sonho meio maluco.
Uma chuva rápida de gotas grossas, que durou só o tempo de acordar-nos todos, marcou nossa volta às canoas.
Com um ventinho contrario de SE, varrendo as nuvens do céu e levantando umas marolinhas na superfície da água, fomos remando até a Ilha Grande de São Rafael, que divide o rio em dois largos braços. Conversando, tirando foto e contando piadas, seguimos remando até o Campo Jandui, situado no extremo SO dessa larga porção de terra cercada por água, praticamente utilizada apenas para criar gado bovino e caprino solto.
O Campo Jandui fica bem pertinho do antigo Campo Juá, que deixamos de utilizar depois que o grande juazeiro, onde nos arranchávamos, tombou num dia de forte ventania.
O Campo Jandui é apropriado para armar quantas redes e barracas quiser: bom para acampar com um grupo maior ou quando tem mais de uma pessoa querendo dormir como a gente, na rede em vez que na barraca.
O pôr do sol  visto do Campo Jandui é especial, com o Sol desaparecendo atrás da Serra do Meio, o céu tingindo-se de vermelhos e laranjas, as luzes das casas do Sítio Mutamba brilhando de longe ao crepúsculo.
Para o jantar preparei uma sopa de macarrão com lentilhas: não sobrou nada.
Escrevi minhas anotações no “diário de bordo” deitado na rede.
A Lua nasceu quando todo o mundo já estava dormindo.
Boa noite.



3º dia

Tem jeito melhor de ser acordado que pelo canto dos passarinhos pulando de galho em galho na arvore por baixo da qual você está dormindo?
Quatro e quarenta e cinco. O dia já clareou, mas o Sol ainda não apareceu no horizonte.
Ao seu surgir, lentamente, uma ampla porção de céu ficou da cor de ouro. Das serras Branca e Jatobá, lá no fundo, aparecem apenas as silhuetas no horizonte.
Enquanto Moreno ficou acendendo o fogo, peguei a câmera fotográfica e fui dar uma caminhada até o juazeiro caído, que, contudo tombado sem graça de um lado, continua vivo, verde e bonito. Como o local não é mais utilizado como rancho, um capim com mais de um metro de altura tomou conta do pedaço. O orvalho abundante me molhou corpo e roupa dos pés ao peito.
Tirei umas fotos do amanhecer dourado e voltei para o acampamento. Quem encontrei perto do fogo foi uma das duas mulheres, Jamile, se propondo para preparar um cuscuz pro café da manhã. Confessei que não tinha trazido a cuscuzeira, pois preparo meu cuscuz de outro jeito, mas ela não se perturbou com isso e disse que ia utilizar um pano de prato, se tivesse um limpo.
Assim ela colocou os flocos de milho, molhados e salgados, num prato que cobriu com o pano limpinho; aí virou tudo com jeito e deu um nó apertado. Enfim colocou o prato de cabeça pra baixo apoiado na borda da panela com quatro dedos de água fervendo.
Ficou perfeito... e sem gosto de pano.
Desmontamos o acampamento, carregamos tralha e bagagens às canoas e zarpamos em direção à Ilha Timbaúba, por volta das sete e meia. De novo as duas mulheres saíram juntas numa canoa e seus maridos na outra, sendo que eles trocaram de posição na canoa, pois Renato quis ser o proeiro do barco dessa vez.
Mulheres na frente, homens atrás: as proas das canoas diretamente apontadas para a Serra de Jucurutú, que de longe parece ser uma pirâmide.
Quando chegamos aos baixios do Sítio Mutamba, onde o rio dobra seu curso de 90º diretamente pro Sul, prosseguimos com cuidado redobrado, pois a área está infestada de tocos de tronco de carnaubeira, muitos dos quais bem visíveis e outros perigosamente escondidos, de repente a um palmo por baixo da água.
Lanche energético a bordo, no meio do rio, juntando as três canoas uma perto da outra, apoiadas e presas pelos galhos esqueléticos de uma grande arvore, cujo tronco fica todo por baixo da água.
Fomos remando até a ilha Timbaúba sem parar no Sítio Mutamba. Sendo domingo, vamos tentar chegar à noite no Campo Echo, de onde fica fácil na segunda de manhã ir pra feira de São Rafael. Não tem tempo a perder por tanto.
Ao chegar na ilha, as duas mulheres e um dos homens, Gustavo, o alagoano, disseram que não iam participar da trilha e subir o rochedo, preferindo tomar um banho refrescante.  Levando água, castanha, fruta seca e meia dúzia de bananas, fomos lá escalar o maior rochedo da ilha, só nós três: o paulista, o potiguar e o italiano.
A trilha se adentra na ilha até as ruínas de uma antiga casa de tijolos maciços, enegrecidos pelo tempo. De lá até o pé do alto rochedo precisamos usar um pouco o facão para abrir caminho.
A escalada é um pouco cansativa e precisa ficar atentos com a urtiga e os cactos espinhentos. No topo do rochedo, a vista compensa o esforço: a panorâmica de 360º deixa sem fôlego também quem não sobe pela primeira vez.
Carcarás curiosos ficaram voando sobre nossas cabeças.
Calorzinho danado: lanchamos, tomamos água, tiramos umas fotos e voltamos às canoas.
Tomado um breve banho refrescante, remamos até o outro extremo da ilha, onde existe uma velha casa abandonada, usada como rancho por alguns pescadores locais, além da gente.
Em 2008, a artista fluminense Mirra, que participou de uma expedição Araras-Jucurutú, pintou na base do rochedo lá, perto da casa, um periquito verde desse tamanho, parte do seu projeto “Museu da Terra”, única das oito pinturas realizadas durante a expedição, que sobreviveu a inclemência do tempo.
Sendo domingo, não tinha ninguém na casa. As portas da frente e do fundo estavam abertas. A casa é composta por dois amplos quartos, onde dá para armar umas dez redes, e a cozinha no fundo. O piso é de terra batida. O fogão improvisado é feito de grandes tijolos maciços em cima dos quais se podem apoiar panelas e grelhas.
Com a mesma lona azul que usamos como tapete no dia anterior, criamos uma área de sombra por baixo do rochedo.
Cozinhei pro almoço carne de sol assada, arroz da terra, batata doce e abobora cozidas.
Depois do almoço, subimos no topo do rochedo, que não é tão alto quanto o outro, mas tem boa vista também, e tomamos café e digestivo lá em cima. Digestivo sim, pois Gustavo abriu o jogo e mostrou uma garrafa de caninha boa da Paraíba, que carregou na bagagem para tomar numa ocasião boa.
Aproveitando de um vento propicio, às duas e meia saímos remando em direção a São Rafael.
O vento favorável durou só uma meia hora ou pouco mais. Com vento contrario custou um pouco chegar aos baixios e de lá cruzar para a Ilha Grande. Mas enfim, o vento baixou e chegamos sem outras dificuldades ao Campo Echo na hora do pôr do sol.
Este foi o dia no qual remamos mais, completando aproximadamente 25/26 quilômetros.
Enquanto os quatro amigos e Morenos foram levantar logo as barracas antes do crepúsculo, eu acendi o fogo e coloquei a água do café para ferver.
O Campo Echo talvez seja o local onde mais acampamos durante nossas aventuras. Às vezes nos acontece de parar aqui mais de uma vez ao longo da mesma expedição. O rancho principal fica por baixo de um amplo juazeiro, onde dá para armar até três redes sem incomodar a passagem de ninguém. Algumas grandes pedras formam mesas e bancos naturais. Logo perto da arvore, apenas fora da copa dela, algumas pedras, encostadas em pé numa rocha maior, constituem um fogão perfeito para preparar nossas refeições.
As barracas ficam montada num espaço plano, protegido do vento pela mata que se engrossa no cume do morro.
O sábado não é um bom dia para dormir no Campo Echo, pois sendo localizado não muito longe da cidade de São Rafael, é possível ficar incomodados pelo som de algum show ao vivo ou algo parecido.
Subitamente, com a cumplicidade da escuridão chegando, um pé de chuva nos surpreendeu tomando café na frente da fogueira.
Choveu por quase uma hora inteirinha, que esperamos passar para começar a cozinhar. Beliscamos cubinhos de queijo com umas bolachas salgadas, tomando mais uma caneca de café quente. Quando enfim estiou, passadas as sete da noite, mudando rapidamente de planos, preparei em pouco menos de quinze minutos uma macarronada com molho de tomate e sardinhas que encheu e esquentou a barriga de todos os presentes.
As nuvens passaram e as estrelas voltaram a brilhar no céu. 
A Lua nasceu muito mais tarde. Só viu quem foi fazer xixi de madrugada.
Boa noite.



4º dia

Segunda é dia de feira em São Rafael. Sábado tem feira no Assu e domingo em Jucurutu. Nos anos oitenta do século passado, quando foi construída a barragem Armando Ribeiro Gonçalves e inundado o Vale do Assu, a cidade de São Rafael foi reconstruída inteirinha cinco quilômetros mais pra lá de sua sede original.
Até o fim de 2010, a antiga torre da igreja surgia do nada no meio do rio, símbolo e cartão postal da cidade; tiramos muitas fotos passando com as canoas perto da torre durante nossas expedições. De repente, na noite de 17 de dezembro, a torre ruiu e desapareceu na água.
Quando o rio está realmente muito seco, como foi ficando nos últimos dois anos, precisamos remar com cuidado entre as ruínas da antiga São Rafael, que ficam à tona, sendo que da torre da igreja só ficou em pé um toquinho.
Do Campo Echo dá para ver o atual porto das canoas de São Rafael, onde no dia de feira o vaivém de barcos motorizados, trazendo e levando de volta os moradores das casas e vilas ribeirinhas da região, é grande.
Como todo o mundo estava ainda dormindo, pensei em filmar os barcos indo e chegando, assim pequei o tripé, a câmera, um banquinho e fiquei acompanhando a movimentação: de um lado canoas e barcos, do outro: carros, motos e também um caminhão, que vai e vem carregando todo o mundo na caçamba por dois reais à cabeça.
De manhã cedo e à tarde são os momentos melhores para tirar fotografias e filmar boas imagens neste ecossistema único ao Mundo: a caatinga, típica do sertão nordestino e brasileiríssima.
Com um bom binóculo, o bird-watching não tem limites. Um zoom legal na câmera fotográfica permite trazer pra casa umas boas lembranças da fauna local.
Deixei a câmera filmando sozinha no tripé e fui acender o fogo para colocar a água do café a esquentar.
Com o almoço regional na feira por volta das dez e meia, não precisa preparar um café da manhã reforçado na segunda: pode ser normal. Café, leite, pão, queijo, ovos mexidos e fruta.
Quando quebrei o primeiro graveto, Moreno acordou e meio minuto depois já estava em pé, dobrando sua rede bocejando.
No Campo Echo não precisa montar a mesinha para o café da manhã. Duas largas pedras planas oferecem uma superfície de apoio ampla e na altura certa para pratos, canecas, bandejas, panelas etc...
Quando o barco de Severino, que vai e vem do Sítio Mutamba, passou na nossa frente, acenando com o braço, pedi pra ele tocar a buzina...
OOOOOOOONK!!! 
OOOOOOOONK!!!
Menos de meio minuto depois, o zíper da primeira barraca anunciou sinais de vida vindo da Área VIP.
Tomado o café da manhã, em dez minutos fomos remando até o local onde o caminhão carrega e descarrega pessoas e mercadorias. Amarramos as canoas no tronco de uma arvore à beira-rio e carregamos nas mochilas só o necessário para dar um passeio na cidade em dia de feira.
Uma camioneta branca apareceu, carregada de sacos e sacos de ração, com três pessoas em cima dos sacos. Em dez minutos, os três homens descarregaram toda a carga e nos fomos para São Rafael na caçamba da camioneta, cujo motorista logo me passou o numero de celular dele para garantir-se a viagem de volta.
A feira de São Rafael já não é mais como uma vez, mas continua característica e sugestiva.  O plástico invadiu o Planeta inteiro e fica difícil encontrar um lugar que esteja livre disso. 
Por baixo de uma  grande cobertura toda aberta nas laterais, ficam principalmente as bancas de frutas e verduras, os grãos e os outros alimentos: os queijos típicos, coalho e manteiga, o frango recém abatido, o peixe, todo tipo de abóbora.
Bem pequenina, encostada num poste de ferro, está a  banquinha do seu Fausto, que vende raízes e mel de quatro tipos de abelha diferente, prepara garrafada para todo mal e só não tem remédio para a morte. Joana logo comprou três litros de mel, mais uma garrafinha menor com mel de jandaíra.
No resto da praça, tem banca vendendo qualquer coisa: redes de São Bento e Jardins de Piranhas, roupas novas e usadas, panelas de alumínio de todos os tamanhos, peças de bicicleta, ferramentas, os característicos produtos utilitários sertanejos, feitos de couro: das bainhas de facas, passando por vários modelos de alpercatas, todos os arreios e outros acessórios do fazendeiro,  até os característicos banquinhos de todo tamanho, de couro de vaca, se for no estilo de Caicó, ou de cabra, se for do assuense.
Bem no meio da cobertura fica a área de alimentação, onde a comida é preparada em grandes panelas sobre fogões feitos com latas cheias de carvão em brasa.  É comida popular feita ao gosto do povo. Tem carneiro, bode, galinha, peixe, carne na panela e assada. Tem buchada para quem gosta, feito eu. Tem feijão verde e preto: pode escolher ou comer os dois. E vêm também: batata doce, jerimum, arroz, vinagrete, farofa e, para beber, suco de fruta.
Sentamos um ao lado do outro numa das pernas de uma grande “U”, feita de mesas cobertas por toalhas de plástico com estampa floral.
Na feira comprei fruta e verdura frescas. No prédio do mercado das carnes, única construção no meio da praça, comprei carne-de-sol e frango. Procurei pelo vendedor de chapéus de palha de carnaúba, mas não o encontrei.  A palha de carnaúba é muito resistente e aguenta firme quando molhada:  o chapéu oficial IGARUANA, usado durante nossas expedições, é de palha de carnaúba. Para não perde-lo, quando o vento sopra mais forte, é fundamental um laço apertado por baixo do queixo.
Na loja de seu Reginaldo, comprei dez mechas novas para as lamparinas à óleo que usamos nas noites escuras. Ali vende também chapéus de palha, mas não de carnaúba.
Na banca de queijos ao lado do armazém na esquina, experimentei três tipos diferentes de queijo coalho, antes de decidir-me.  Gostei muito também, só de ver, de um queijo manteiga artesanal, produto local, e comprei só um pedacinho para a galerinha experimentar.
Delicioso, ele derrete na boca, mas é gorduroso pra caramba.
Para quem gosta de refrescar-se e hidratar o corpo tomando uma cerveja gelada no dia da feira, o local apropriado é o Bar do Calçadão.
Ali você pode levar seu tira-gosto e assá-lo numas churrasqueiras feitas de aro de pneu de carro, que ficam no quintal do bar, na sombra de uns imbuzeiros. O povo compra sua carne, seu peixe, frango, linguiça e assa nas churrasqueiras; se quiser arroz e feijão, para bater um rango mesmo, ali tem. 
Em dias abençoados, a gente pode ter a sorte de assistir à exibição de algum violeiro local. Em época de vaquejadas, tem muitos músicos acompanhando os eventos de uma cidade para outra.
Agora que falei em vaquejada, me lembrei  duma vez que, almoçando na feira, conhecemos uma dupla sertaneja vinda de Goiás, formada pelo pai e o filho, respectivamente, violeiro e sanfoneiro. Gente finíssima, eles trajavam as roupas típicas de vaqueiro e viajavam pelo Brasil em duas motocicletas customizadas, verdadeiros “cavalos-de-ferro”.
Estavam rodando o Nordeste há mais de seis meses, exibindo-se ao vivo, e também participando mesmo dos rodeios, nas vaquejadas que fossem pintando: livres como passarinhos.
Não chegamos a escutá-los tocar e cantar, pois naquela hora, os únicos instrumentos a ser usados foram garfos, facas e colheres.
No Bar do Calçadão, já somos os queridinhos. Desde 2008, levamos para conhecer o Vale do Assu e a feira de São Rafael pessoas de varias nacionalidades, quase de todos os continentes; a curiosidade e a maravilha do sertanejo ao conhecê-las, são tão grandes quanto aquelas dos turistas que descobrem o Brasil autentico, afastando-se das cidades do litoral.
Lá dos fundos, logo vem um prato com carne assada, toda picadinha: cortesia da galera do Sitio Mutamba, aboletada por baixo do imbuzeiro maior.  Fui lá agradecer e cumprimentar: muitos deles não conheço pelo nome, mas só por um sorriso ou um aceno de braços trocado de uma canoa para outra.
A curiosidade do povo não foi tanta dessa vez, quando souberam que estava viajando com quatro brasileiros, mas a cortesia e a simpatia foram as mesmas.
Enfim, por volta da uma da tarde, fomos embora, passando pela fabrica de gelo, antes de voltar às canoas: meia barra de gelo é suficiente para os últimos dois dias de expedição.
Barriga cheia, pé no mundo; haja vontade de remar depois desse almoço regional!
Na sombra de uma oiticica, preparamos um café forte e gostoso e enfim zarpamos do porto das canoas de São Rafael.
 Fomos remando sem parar até a Ilha da Caixa d’Água, onde descansamos um pedaço, lanchamos e tomamos banho.  Dobrando logo a direita, remamos por mais seis quilômetros até chegar ao Campo Alfa, na foz do rio Caraú.
Como deixa entender o nome, o Campo Alfa foi o primeiro acampamento que fundamos em 2008, na época de nossas primeiras expedições no Vale do Assu. Rancho de pescadores, o Campo Alfa fica numa ponta da Ilha das Cabras: tem uma área de sombra ampla, contudo não muito alta, e fogareiro natural de primeira. Para montar as barracas, uma área plana de areia fina: perfeito.
No quarto dia de expedição, a galerinha estava sentindo um pouco do cansaço acumulado durante nossas aventuras. As duas mulheres ameaçaram ir dormir sem jantar.
Logo preparei, na frigideira wok de ferro, o peito de frango em cubos ao curry, com batata e cebola, que servi sem arroz. Feitos os pratos, refoguei uma farofinha no fundo da panela com farinha de mandioca amarela.
Depois do jantar, eu ainda tomei um café olhando as estrelas no céu. Quando me dei conta, reparei que era o único ainda acordado.
Boa noite.


5º dia

Na madrugada do quinto dia, choveu um pouquinho.  Nem me levantei da rede; em dez minutos passou. Quando abri de novo os olhos, já estava amanhecendo.
O Sol apareceu soberano, tingindo tudo de um tom alaranjado. Fui pro rio tomar um bom banho. Deixei todo mundo dormir até ás seis: o próprio Moreno, quando viu que não estávamos com pressa, acendeu o fogo e voltou pra rede cochilar um pouco.
Depois do café da manhã, desmontamos o acampamento, carregamos bagagens e tralha nas canoas e saímos remando pro Leste, remontando o rio Caraú.
Com céu nublado e um ventinho contrário refrescando a manhã, subimos o rio sinuoso até onde deu. De repente,  a profundidade do rio foi diminuindo, diminuindo até que as canoas ficaram atoladas no fundo de barro escuro. Uma revoada de garças passou por cima de nossas cabeças grasnando. O céu já não estava mais nublado. 
Lentamente voltamos por um meio quilometro até encontrar um pescador em sua canoinha. Perguntei se tinha peixe pra vender e ele respondeu que sim. Escolhi um tucunaré grande e duas tilápias entre o pescado dele e transferimos os peixes pra nossa caixa térmica.
Remamos mais um meio quilometro até encontrar a arvore perfeita para arranchar. Encostamos as canoas na beirada e nos jogamos no rio para refrescar-nos.
Uma canoa carregada com um montão de capim, leve mas volumoso, passo na nossa frente. Na estiagem, agricultores e criadores de gado costumam semear e plantar à vazante, aproveitando do solo fértil e molhado da beira-rio.
 É bom lembrar-se, ao sair por uma aventura dessas, que peixe assado na brasa fica melhor se for envolto em folha de bananeira ou papel alumínio. Se desconfiar que possa ser difícil arranjar uma ou mais folhas de bananeira no meio do sertão, é bom não se esquecer de carregar um rolo de papel alumínio.
Além de temperar o peixe, eu coloco no embrulho, que depois fecho com todo cuidado, também batatas, cebolas e cenouras fatiadas: isso gera um intercambio de sabores muito interessante. Pode servir com arroz branco.
No último dia dessa expedição, não durou muito o descanso depois do almoço: uma meia hora depois, de volta ao remo, acompanhamos outra margem do rio até os pés da Itatinga, o alto rochedo onde geralmente paramos no primeiro dia de aventura.
Itatinga quer dizer em Tupi “pedra branca”, mas não é o que parece no momento. Com as boas chuvas deste ano, o rochedo estava tudo verde, pelas copas das arvores e outras plantas, que cresceram por todo lado.
Desta vez, para a escalada do rochedo foi todo mundo. A trilha é mais fácil que aquela da Timbaúba, mas, minha gente, olho na urtiga e no xique-xique, que não perdoam!
Calcular uma boa margem de distancia é fundamental. Os espinhos de xique-xique seco ficam se espalhando por aí e tem que ficar de olhos abertos para não pisa-los.  Chinelo não aguenta: o espinho passa a borracha e fura o couro da gente. Melhor é calçar um par de tênis ou umas botas para trilhas mesmo, quem tiver.
No topo da Itatinga, lá vem de novo o Gustavo com sua garrafa de caninha, para comemorar. Que figura, hein?! Bom, pelo menos, ele só toma “nas alturas”... rsrsrs.
Mas, enfim, estamos no topo da Itatinga; a vista panorâmica deixa alguns sem palavras e leva outros a falar até besteira; os abraços de amigos-para-sempre, a sensação de ser livre e outras emoções fortes tomaram conta do momento.
Se alguém chorou, eu não me lembro.
“Não, não podemos esperar até o pôr do sol no topo da Itatinga, meus amigos”.
Segurança em primeiro lugar.
“Bora, galera! Vamos descendo com todo cuidado, que onde foi fácil subir, pode ser difícil descer, não é verdade?”.
De volta às canoas, aquele lanchinho especial para ficar cheios de energia e remar com boa vontade até o Sítio Araras.
O Sol desceu atrás da Serra das Pinturas, à nossa esquerda, com a mesma indolente preguiça com a qual nós fomos remando e conversando, contando piadas e vantagens, até o porto das canoas.
Quando chegamos à base, enfim, no outro lado do céu, as estrelas começavam a brilhar.
Ainda deu para fazer quatro viagens carregando toda a tralha pra casa.
As três canoas ficaram dormindo mais uma noite ao ar livre, virada para baixo, como dita a tradição.
A Lua brilhou no céu só muito mais tarde.  
Alguém viu?