quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Chegando ao Sitio Araras pela primeira vez

Em maio de 2008, quando cheguei no Sítio Araras pela primeira vez, na segunda-feira depois do Dia das Mães, eu estava já impaciente de ver a estrela da boa sorte brilhar para mim mais uma vez.
Há seis meses, estava decidido a comprar uma casinha à beira-rio no interior do Rio Grande do Norte, mas, apesar da muita procura, não conseguia encontrar o local certo.
As primeiras duas canoas Igaruana estavam já prontas e Marco Antonio, da longínqua Londrina/PR, queria saber para onde despachá-las.
Começando por Jardim de Piranhas, primeiro município norteriograndense à beira do rio Piranhas/Assú, perto do Caicó, fui procurando a sede da Base Igaruana, ponto de apoio das futuras expedições em canoa, de cidade em cidade, quase de vila em vila. Eram muitos os fatores a serem considerados na pesquisa, mas, principalmente, eu estava procurando um lugarzinho simples e bonito, onde fosse fácil chegar saindo de Pipa, de preferência com meios de transporte públicos. Nada fácil, viu?!
Na pegada do inverno de 2008, choveu muito no Nordeste. A ponte do Assú, na BR-304, ficou por um tempo perigando de ser derrubada pela enchente do rio homônimo. Vilas ribeirinhas acima e abaixo da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves tinham sido atingidas pela força descomunal do rio. 
Algumas semanas antes da segunda-feira em questão, com toda a família, fomos passar uns dias em São Rafael, município famoso no Vale do Assú por ter sido completamente reconstruido igualzinho uns cinco quilômetros mais pra lá, quando da construção da barragem; em 1985, o DNOCS* alagou a bacia natural do rio principal e seus afluentes, criando o então maior reservatório de água doce do Nordeste. O topo da torre da antiga igreja de São Rafael ficou emergindo no meio das águas da barragem por décadas, virou cartão postal da cidade, até que ruiu em dezembro de 2010. 
Chovia muito ainda. O rio tinha chegado à periferia da cidade e alagado parcialmente a área externa do clube local, onde ia rolar um show musical no fim de semana.
Afinal, em São Rafael não encontramos a casinha para comprar, mas fomos muito bem recebidos pelos moradores, que nos aconselharam a voltar quando parasse de chover tanto.
No domingo de manhã, enfim num dia de sol, fomos embora de carona do centro da cidade até o trevo na BR-304; na caçamba de um caminhão, que levava uma alegre galera para curtir o dia de folga logo depois da barragem, no vizinho município de Itajá.
O nome Itajá ficou na minha cabeça nos dias seguintes.
Filha e mulher foram passar o Dia da Mãe com a avó e a bisavó em João Pessoa àquele ano. Lindo, né? Quatro gerações reunidas. Voltariam só na segunda à tardinha...
Acordei às quatro e meia, com o sol raiando no meio do mar, e fui pegar o primeiro ônibus para Natal. Em Parnamirim, na frente do Posto Dudú, atravessei a BR-101 (ainda não tinha passarela lá) e fui procurar saber sobre a próxima condução pro Assú, Mossoró ou mais pra lá. O primeiro a passar foi um carro expresso para Fortaleza, cujo motorista, estando o ônibus meio vazio, topou em levar-me até o trevo de Itajá.
A viagem foi bastante rápida e paramos só uma vez em Lages, em local que depois entendi ser parada obrigatória para a maioria dos ônibus que circulam pela BR304. De Lages, aos pés do Pico Cabugi, continuamos a viagem por uma hora e pouco mais, até chegar no trevo de Itajá, entrando por um lado, e de Ipanguaçu, pelo outro.
Desci do ônibus sem carregar alguma bagagem, pois tinha saído de casa apenas com a roupa do corpo, tênis no pé, carteira no bolso e chapéu na cabeça. Me esqueci até de levar a pequena cybershot para bater umas fotografias.
O ônibus saiu com uma bufada preta de óleo diesel e eu fiquei lá sozinho, num típico trevo de estrada interiorana: a via de asfalto principal, as entradas segundárias, a cidade ao longe e o sertãozão imenso por todo lado. Ninguém à vista.
O Vale do Assú é conhecido no estado como polo industrial na produção de cerâmica . No alto de uma colina à direita reconheci uma olaria dessas pela alta e característica chaminé.
Sem nem saber, comecei a caminhar pela estrada que foi se transformando na rua principal da cidade de Itajá, aproximadamente um quilômetro depois.
Deviam ser já umas onze horas e não tinha quase ninguém na rua. Passei por uma praça, deserta, e continuei andando. Ali a rua desce um bocado e depois sobe de novo. Passei por uma ponte e caminhei até outra praça, a da igreja e do prédio da prefeitura.
Circulavam pela rua e ruelas algumas motos e bicicletas, mas quase ninguém andando. Cruzei com uma moça com um guarda-sol aberto para proteger o neném que carregava no colo. Bom dia.
O dia estava ensolarado e já muito quente. Na farmácia da praça, comprei um sorvete e perguntei sobre o rio. Recebi troco e informações e continuei andando. Passei pelo correio e parei no mercadinho de Lourenço, onde comprei uma garrafinha d'água e uns biscoitos para dar-me força e coragem. Três quilômetros andando até lá do trevo, mais dois até a barragem, me disseram.
Como estava bem disposto, agradeci e continuei a caminhada. As casas foram rareando e depois de novo só o sertão por todo lado.
A caatinga da vegetação xerófila, que no imaginário coletivo está sempre seca, estava toda verde naquele dia. Jumentos soltos vadiavam no meio da estrada, experimentando ora as folhas daquela árvore, ora o capim que crescia no barranco. 
Após pouco mais de um quilometro, no alto de um outeiro de repente o visual mudou completamente, abrindo-se muito mais amplo e oferecendo-me, tudo de uma vez, uma panorâmica do Vale do Assú em toda sua beleza; um fantástico rio-lago à montante da barragem, com uns cinco quilômetros de distancia para outra margem.
Nos fundos, de um lado as serras esbranquiçadas atrás de São Rafael e do outro a extensa Serra das Pinturas. Bem no fundo, lá no meio do horizonte, a Serra de Jucurutu, que de longe parece mesmo uma pirâmide.
A visão foi deslumbrante e, quando me recuperei, percebi que, sem parar, tinha passado de um trevo e que estava na frente de uma construção com aparência de abandonada, nada interessante. Continuei caminhando, já guiado pelo instinto.
Duzentos metros à frente o asfalto bruscamente terminou e a estrada ficou de terra. Vi o Sítio Araras delinear-se de repente, depois de uma curva. Primeiro a elevada caixa d'água comunitária, pintada de branco, apareceu do nada e depois todas as casas reunidas a formar a vila. Uma placa me informou sobre a existência de um restaurante de peixe pouco distante. Bom sinal, pensei. 
Mais meio quilômetro por baixo do sol quente, terra dura amarela, e finalmente entrei andando no Sítio Araras, vila de pescadores no município de Itajá: duas fileiras de casinhas, a maioria de taipa, num promontório molhado pelas águas da barragem.
Ao meio-dia ninguém está na rua sem uma boa razão no sertão. Nos alpendres de algumas casas, vi moradores descansando nas redes, depois do almoço. Umas crianças passaram correndo. Desci pela rua quase correndo, já pensando nas propostas do cardápio;  só para descobrir que segunda é dia de repouso do restaurante. Quem me disse foi logo Chico Felix, proprietário do estabelecimento, figuraça local com o qual fiquei na hora pesquisando a possibilidade de comprar uma casinha por ali. Ele ficou meio desconfiado, mas chegou a mostrar-me a casa de um filho dele. Depois me passou seus números de telefone e despediu-se, saindo logo em seguida de carro pra cidade.
Naquele dia aperreado e quente quanto determinante para minhas futuras andanças, a estrela que brilhou para mim foi o próprio Sol, que esquentou meu cocuruto, mesmo por baixo do chapéu, do trevo da rodovia até lá.
A única vendinha da vila estava fechada. Pedi água para uma moça que apareceu na porta meio aberta de uma casa de taipa da fachada rebocada. Me ofereceu água da chuva, disse, que bebi com gosto. Perguntei se sabia de alguma casa para vender e ela me avisou que era melhor falar disso com Seu Zé... Zé Preto, especificou. Não precisei fazer mais perguntas, pois, como por encanto, Zé Preto foi chegando.
Homem de idade, mas ainda ativo; caboclo da beira do rio, pescador do couro curtido de tanto sol, seu Zé me convidou para tomar um café com bolacha. Achei o máximo. Então fomos sentar no frescor da casa dele, das paredes de barro todas rachadas, bastante escura na penumbra, também pela reação não imediata dos olhos, acostumados à luz do dia. Foi assim que conheci Dona Santa e seu café gostoso, forte e sem açúcar, uma raridade no interior, onde é mais comum que lhe ofereçam um café mais fraco, mas bem docinho.
Depois do café, sem perder tempo, ele foi me mostrar duas casas que estavam à venda na vila.
A primeira estava perigosamente perto do rio naquela época de enchente. Mas da segunda opção eu gostei. Ao passar pros fundos de uma casa de taipa bem conservada com ao lado uma tosca construção de alvenaria inacabada, esbarrei num pé de cajarana bem grande, tudo verde. A árvore estava aos cuidados das cabras da vila, criadas soltas, que comiam tudo o que alcançassem equilibrando-se nas patas traseiras.
Calculei com uma olhada a distancia que existia entre a casa e o córrego, no fim do terreno, e entendi que não precisava mais procurar o local certo para a Base Igaruana. Eu tinha acabado de achá-lo. Que sorte!

* DNOCS = Departamento Nacional de Obras Contra a Seca