domingo, 3 de fevereiro de 2013

Os tapuios de Jacob Rabbi

Jacob Rabbi, o famigerado aventureiro alemão, delegado flamengo junto aos tapuias do chamado Rei Jandui, e que viveu alguns anos entre aqueles silvícolas, deixou uma cronica, oferecida ao Conde Mauricio de Nassau, conhecida como "Relatione Iacobi Rabbi". A síntese de tal obra foi incluída em 1647 no livro de Gaspar Barleu: "Historia dos Feitos Recentemente Praticados durante Oito Anos no Brasil sob o Governo de João Mauricio, Conde de Nassau", que trata do período em que Nassau esteve no Brasil, de 1637 a 1644. 
A seguir o texto em questão. 


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Mas para não escaparem os tapuias a quem trata do Brasil, merecem que deles se faça também uma descrição. E' célebre no Brasil holandês o nome dos tapuias, por causa do seu ódio aos portugueses, das guerras com os seus vizinhos e dos auxílios mais de uma vez prestados a nós. Habitam o sertão brasileiro, bastante longe do litoral, onde dominam os lusitanos ou os batavos. Distinguem-se por suas designações, línguas, costumes e territórios. São-nos mais conhecidos os que moram nas vizinhanças do Rio Grande e do Ceará e no Maranhão, onde impera Janduí ou João Wy. 
Difundem-se por grandes espaços, abrangidos por cinco rios: o Grande, o Quoauguho, o Ocioro, o Upanema e o Woiroguo. Estes rios penetram diversas léguas pelo sertão a dentro, se bem que o rio Grande apenas seis, sendo de admirar que tenha tal nome, a não ser que se explique talvez pela embocadura bastante vasta, qual é na Holanda a do Mosa. Acreditam os naturais que tenha sido maior o seu curso, mas ignoram para onde desviou o álveo. 
São os tapuias rodeados em parte de amigos e em parte de inimigos: com estes às vezes estão em paz, às vezes em guerra. Vagueiam à maneira de nômades e não se deteem sempre em aldeiamentos ou territórios fixos, mas, mudam de morada, conforme a quadra do ano e a facilidade da alimentação. Teem compleição assaz robusta em tão grande número deles quasi a mesma para todos. São minazes no semblante, ferozes no olhar e de cabelos pretos. Na velocidade da carreira dificilmente cedem às feras. São todos antropófagos e aterrorizam aos outros bárbaros e aos portugueses pela sua fama de crueldade. 
Sua terra, eriçada aqui de selvas, ali alteada de montanhas, acolá baixa e paludosa, é fecunda de gados, frutos e mel de vários gêneros. Fazem eles por astúcia o que não podem fazer por força, e preferem enganar o inimigo, a experimentá-lo em guerra aberta; mas, compelidos pela necessidade, não recuam da luta. Pelejam com arcos e flechas, dardos de pedra e clavas de pau. Por admirável contradição da natureza, gostam da inércia sempre que não empreendem guerras, mas odeiam o ócio, quando há lugar para a vingança e para a glória. Mostram uns aos outros inimizades encarniçadas, acima do que permite a humanidade ou o ódio: nada é vergonhoso ou feio para aquele que deleita a vista com os males dos adversários. 
O cuidado da família deixam-no para as mulheres e para os velhos: de tudo o mais em que há honra e utilidade cuidam os homens e os mais vigorosos. Sob o morubixaba Janduí vive-se do seguinte modo e observam-se estes costumes: de manhã e de tarde, o chefe anuncia e prescreve publicamente o que se tem de fazer durante o dia ou durante a noite, aonde se há de ir, onde se deve estanciar, quando convém levantar de novo o acampamento. Quando vão partir, banham-se, após o banho esfregam o corpo com areia grossa, lavam-se outra vez e espreguiçam-se todos como para sacudir e afugentar a moleza, estalando, numa forte tensão, as articulações de todos os membros. Aquecendo-se ao fogo, do que gostam, raspam e cocam a pele com um pente de dentes de peixes como um raspador, até que, abertos os poros, tirem sangue. Dizem que assim se tornam bem dispostos para a jornada e que não se quebrantam de cansaço. 
Assentado o acampamento não longe da tenda do rei, dividem-se, de um lado e outro, em dois exércitos e bandos. Depois, escolhidos um de cada um dos dois bandos, divertem-se carregando pequenas árvores e correndo. Os bandos seguem o vencedor. Cortam árvores que encontram e cravam os galhos e ramagens à beira dos rios para gozarem da sombra. Esta sombra é o único abrigo contra o calor do meiodia e o refúgio dos velhos e dos jovens. As mulheres, os serviçais e os meninos entram ali com os carros em que transportam as bagagens e trastes. 
A sua alimentação é simples: frutos agrestes, caça fresca, peixes e mel, sem temperos, nem condimentos. As mulheres idosas e estéreis vão buscar as raízes de que se faz pão. As mulheres moças cohabitam com os homens, trazem amendoins para uso comum e preparam a comida. O trabalho dos homens é a pesca, a colheita do mel e a caça. Para eles é glorioso porfiar na luta e no embate das lanças. O fim de quem a êle assiste é o prazer, principalmente dos amantes. As mulheres se pronunciam sobre o valor de cada um e sobre a vitória. Achando-se, destarte, próximos os penhores da contenda, são os estímulos da peleja, as pregoeiras da bravura e as servidoras dos manjares. Não obstante, afastaram-nas dos acampamentos os romanos, porque prolongam a paz com a moleza e a guerra com o medo. 
Quando cai a noite, propícia aos amores, os jovens na flor da idade e que já pensam em casar andam pelo acampamento e pelas barracas, e a eles se unem as donzelas com igual simpatia e afeto. Começam então cantos e danças, ficando as moças atrás dos namorados : isto é um sinal de pedido de casamento. Sempre que se pede a mão de uma virgem, o namorado oferece ao pai dela presentes, não procurados para as delícias feminís ou para ornato das futuras esposas, mas consistentes em caça e mel. Levam ao rei espontaneamente e a cada homem bastantes gados e frutos, o que é recebido como uma honra. Acendem fogueiras na terra ligeiramente cavada, põem sobre elas as carnes, cobrem-nas de areia e esta de brasas, de sorte que as carnes, fiquem perfeitamente assadas em baixo e em cima. A bebida é feita com mel. Rematam os banquetes com cantos e danças, se os executaram com o semblante alegre, consideram isto presságio de uma caçada feliz ; se, porém, o fizeram com a fisionomia mais triste, é sinal de uma caçada infeliz. 
Grande é a veneração deles para os seus sacerdotes, a que chamam feiticeiros e advinhos. Nada do que interessa à comunidade se faz sem eles, seja para darem força a um bom desígnio, seja para obstarem a um pior. Retiram-se para as matas afim de consultarem o demônio, murmuram consigo mesmos e, de volta, clamam em alta voz : "Ga, Ga, Ga" e "Anes, Anes, Anes, ledas, ledas, ledas, Hade, Congdeg" E a estas palavras grita o povo : "Houh!" É trazido com o sacerdote algum demônio ou quem, sob a aparência de demônio, se pronuncia sobre o êxito de uma expedição, sobre os sentimentos favoráveis ou desfavoráveis que lhes vão mostrar os povos para junto dos quais partem, sobre a caça de animais bravios e sobre a fartura de mel. Se êle diz cousas desagradáveis e infaustas, açoitam o adivinho e o demônio. 
Quando se preparam para alguma novidade, tiram auspícios nas vozes das aves: gritam quando elas gritam e perguntam-lhes se trazem alguma cousa de novo. Causam também admiração os sonhos dos adivinhos, e estes os expõem ao rei, fantasiando sucessos prósperos. Daqui se toma manifesto que nada governa mais a multidão do que a supertição: dominada por esta, seja embora vaníssima, obedece mais aos adivinhos que aos próprios chefes. O muito criterioso historiador Tácito chama a isso "segredo da soberania e da dominação" e Aristóteles na Política, "artifícios do mando" Depois de Minos, Licurgo, Midas, rei da Frígia, Numa Pompílio, Druso e outros, fazem o mesmo, no outro hemisfério, os bárbaros, através dos quais nem sequer perpassou tênue aura dos gregos e romanos. Efetivamente, conteem-se os homens dentro da ordem ou com o temor do verdadeiro Deus ou com o do falso, assombrando- os ou com imaginações séries ou fátuas. -Mais de uma nação finge para si uma Egéria ou Veleda ou Aurínia, e até mesmo a América ouve as respostas dos demônios, e também nas suas cogitações intervém alguma cousa maior e mais santa que o homem. Assim, também a respeito da falsa religião é verdadeira a afirmação de que com ela se pode constituir e conservar a república, embora os religiosos adorem ao verdadeiro Deus, e os supersticiosos temam aos falsos. 
Os sacerdotes dos tapuias vão para as brenhas afim de impressionarem os crédulos com o secreto do lugar e pavor das trevas, sobretudo quando já estão os espíritos dominados pela crença no falso deus. Consideram-se ministros dos demônios e a estes conhecedores do futuro. Entre eles é usada, não a circuncisão, mas a incisão dos infantes, a qual praticam com solenidade. Ficam de pé numa longa fila os feiticeiros, cantando e saltando à maneira dos sacerdotes sálios. Um deles sustem na mão a criancinha elevada ao ar, enquanto o povo olha para ela, e depois de umas tantas carreiras, coloca-a sobre os joelhos. Aproximando-se outro sacerdote, fura-lhe com um pau agudo as orelhas e os lábios e neles introduz ossinhos, e durante isso chora a mãe dela. 
O próprio rei assiste a estas cerimônias, e, em acabando elas, repetem os seus cantos e danças. As virgens que desejam casar com honra sua e dos pais são guardadas em casa, sob os cuidados destes, até se manifestarem com as regras os sinais da puberdade. As mães revelam este segredo aos adivinhos, e estes ao rei, que julga poder a donzela casar honestamente, louvando a virgem e sua mãe pela guarda da virgindade. Portanto, como diz Tácito dos germanos, vivem também elas cercadas de castidade, não corrompida pelas seduções dos espetáculos e dos festins. A mãe pinta de vermelho a que vai casar e apresenta-a ao rei. Êle acaricia-a com a mão, manda-a sentar-se junto de si numa esteira, trata-a ternamente e depois envolve-se a si e à virgem em fumaça de tabaco. Em seguida, num laço dextro, atira com um dardo a uma grinalda posta na cabeça da noiva. Se com o tiro ofende e fere-lhe a cabeça, lambe êle o sangue, e isto lhe promete vida mais longa. 
Todos quantos se distinguem na luta, no combate com lanças e na caça consideram-se os mais nobres e entram no número dos heróis. Além disso, pela excelência do seu valor e fortaleza, merecem ser ambicionados pelas próprias virgens, pois julgam que os melhores nascem dos melhores e que não é vão o nome da nobreza, mas se transfunde com o sangue. 
São assaz severos os casamentos, apesar de serem poli gamos os tapuias. Entretanto, achando-se grávida uma das mulheres, abstem-se de relações com ela e cohabitam com outra. As que estão para dar à luz, retiram-se às matas e esconderijos, se o céu está sereno. Nascendo a criança, cortam-lhe o umbigo com um caco afiado, cozinham (veja-se que barbárie) e devoram as próprias mães as secundinas, banqueteando-se e alimentando-se a um tempo consigo mesmas. É costume que a puérpera e o recém- nascido se lavem duas vezes por dia. Durante todo o período da lactação, evita o marido relações sexuais com a puérpera, salvo se for marido de uma única mulher. Fazem também às puérperas este favor : livram-nas de carregar a criança, quando teem de mudar o acampamento. 
São raros os adultérios, cuja punição se permite aos maridos. O marido expulsa de casa a ré de violação do tálamo, depois de açoitá-la, e mata aquela que surpreende em flagrante, o que, segundo dizem, fez com muitas o morubixada João Wy. 
No meio da barraca real, está suspensa uma cabaça ou caixa sagrada, da qual não é permitido ninguém se aproximar sem licença do rei. Todo aquele que o consegue a perfuma com fumaça de tabaco, à semelhança de incenso. Nela estão contidas pedras que não se vêem senão com reverência, chamadas Cehwterah e frutos denominados Titscheyouh, que se estimam mais do que ouro. Crêm que neles existe alguma cousa santa e profética; com eles procuram desvendar o resultado de graves guerras e façanhas. 
O rei medica os meninos doentes com fumigação de tabaco, e acham que isto os melhora. A própria mãe com alguma de suas parentas come o cadáver do que morre. Nós chamamos a isto imanidade, e eles piedade e amor. 
Quem viu e escreveu estas cousas refere que, estando o rei a queixar-se de dores nas pernas, no lado e no ventre, logo se lhe atirou às coxas um curandeiro, aderiu a elas com a boca aberta como se fosse devorá-las. Chupando-as forte e continuamente, depois de dar um berro, começou a soltar cuspidelas copiosas e com uma destas deitou uma enguia, que o rei declarava ser a causadora do seu mal. 
Outro colou-se de igual maneira ao ventre do rei e, depois de dar também um berro, cuspiu uma pedra branca. Em seguida, aplicando-se aos flanços do rei, expeliu, após forte sucção, uma raiz ou cousa semelhante. O rei e o povo aceitavam tudo isto com inabalável fé. Homero conheceu que esta sucção pertence à medicina. De Macaão curando a Menelau ferido diz êle : "sugando o sangue, espalha na ferida suave bálsamo". 
Quando trovej a e sopra mais veemente o vento, é copiosíssima na lagoa Bajatach a pescaria de peixes tão gordos que não é necessário deitar-lhes gordura. 
Os tapuias não semeiam nem plantam sem o auxílio e consagrações dos seus sacerdotes, que sopram sobre os campos o fumo do tabaco e enchem os crédulos com imaginação de fecundidade. Feita a semeadura e a plantação, o rei convoca publicamente os adivinhos e o povo. Eles se pintam de formosíssimas cores e se enfeitam com as penas mais elegantes. O rei cinge uma coroa verdejante. Assim se sentam juntos naquela pompa, secam ao fogo frutos de árvores, trituram-nos depois de secos e misturam-nos, depois de moídos, na água, a qual bebem até vomitá- la. Em seguida, levantam-se os sacerdotes uns após outros, cantarolando e, erguendo para o céu flautas de cana, permanecem com o corpo em tal imobilidade, como se estivessem enlevados com a contemplação de alguma visão celeste, manifestada no ar. Alguns há que trazem pendurado às costas um feixe de plumas de ema, o qual aberto tem a circunferência de uma roda de carro. Outros há que lançam ao ar penas mais leves para verificarem donde sopra êle. E' opinião de todos que o pão cai do céu naquele feixe de plumas, e, se este for mais abundante, promete colheita farta ; se, ao contrário, for mais escasso, pressagia colheita diminuta. 
Como em Abril de 1641 engrossassem as águas dos rios, com vultosos danos para os agricultores, foram os adivinhos consultados acerca de tamanha calamidade. Trouxeram-se as pedras dos áditos e da cabaça do rei para darem os augúrios, porquanto nenhuma outra cerimônia sagrada merece tanta fé, não só por parte da plebe, mas também dos próceres e do rei. 
Começavam-se tais consultas bebendo-se, cantando-se e dançando- se. Lá estavam seis adivinhos para vaticinarem. O primeiro, iniciando o vaticínio, tirou uma pedra e disse que os holandeses haviam travado combate com os baianos, mas já se tratava da reconciliação. O segundo, mostrando uma bandeira de milho, proferiu seu prognóstico sobre a fartura deste cereal. O terceiro, apresentando uma pedra lacticolor, proclamou a cópia dó leite. O quarto exibiu ura seixo em forma de pão e significou que se ia ter abundância de farinha. O quinto, deixando ver um arco e uma flecha circundada de plumas, asseverou ser aquilo dom dos anjos e interpretou o número das penas como outras tantas caçadas de animais bravios. O sexto, mostrando uma pedra côr de cera, pressagiou maior cópia de mel e disse que todas aquelas cerimônias eram necessárias para que, aplacado o nume deles, baixassem as águas, e de novo dessem os campos as referidas produções. 
Em lugar de Deus, adoram os tapuias a Ursa Maior ou o Setentrião, a que nós, pelo seu feitio, chamamos com o povo a Carreta. Quando de manhã vêem essa constelação, alvoroçam-se de alegria e dirigem-lhe cantos, danças, etc. Quando, querem purgar o corpo, introduzem na garganta até o estômago uma haste, que formam de folhas ásperas, até tirarem sangue com a aspereza delas. 
Anualmente, durante o estio, reünem-se em bandos e exércitos distintos para bailes, concursos de lanças e outros jogos consagrados ao Setentrião. Dura a festa três dias. 
Marcham os antagonistas adornados de penas variegadas como para os certames olímpicos. Envolvem as pernas em cascas de árvores, que a elas amarram, servindo-lhes de grevas. Untam a cabeça com mel e torcem o cabelo no alto dela em nó, como os sicambros, no qual cravam uma pluma cumprida e elegante, como novos mirmilões, polvilhando a cabeça com um pó vermelho e pintando o resto do corpo. Atam aos braços as asas da ave chamada Kohituh, pende-lhes das costas um festão de folhagem e cinge-lhes o pescoço uma gola das mais lindas penas. Desta maneira se encontram e travam os combates. O vencedor zomba do vencido com saltos insólitos e inimitáveis. 
Alimentam uns contra os outros inimizades ocultas e transformam os seus jogos em sérias matanças e mútuas chacinas. As mulheres e os filhos tornam-se os despojos e os prêmios da luta. 
Não teem os tapuias repugnância de comer cobras, isto é, às que chamam Manuah. Elas teem na cauda uma ponta, que era vam com grande força no corpo do homem ou da fera que encontram, e, enroscando-se na árvore mais próxima, pois teem quatro côvados de comprido, sugam-lhes com a vida todo o sangue. Há também serpentes venenosas, contra cuja mordedura nem mesmo os sacerdotes estão seguros. Matam, se não se corta logo com espada a parte ofendida. 
Os sacerdotes talham membro a membro os cadáveres. As velhas acendem fogueiras para assar os membros e celebram exéquias com lágrimas e lamentações. Depressa as terminam, mas guardam mais tempo a sua dôr. As mulheres comem as carnes e as raspam até os ossos, não em sinal de inimizade, mas de afeto e fidelidade. 
Os cadáveres dos magnatas são devorados pelos magnatas, isto é, a cabeça, as mãos e os pés. Guardam cuidadosamente os ossos até a celebração do seguinte festim solene. Então os engolem reduzidos a pó e dissolvidos em água. O mesmo se faz com os cabelos do defunto que os parentes bebem, e não voltam às suas danças e cantos senão depois de consumirem todos os restos do cadáver. 
Para sagrarem o rei comparecem magotes de adivinhos e sacerdotes e, fulgentes de plumas e cores, ungem-no com um bálsamo precioso e põem-lhe na augusta cabeça uma coroa tecida das mais lindas plumagens. Depois repetem os cantos e hinos e, se durante essas mostras de regozijo público, se lembram por acaso do defunto, derramam lágrimas e soltam medonhas ululações. 
O rei domina mais por uma autoridade suasória que imperativa, a não ser que alguém trame violência contra êle, o que será funesto ao autor. Crêem esses selvagens na imortalidade das almas isto é, das daqueles que se finaram de morte natural e não de mordedura de serpente, nem de veneno, nem de qualquer violência praticada por inimigo. Fabulam e mentem a respeito da raposa, que suscitou colntra eles o ódio do seu deus, a Ursa Maior, e lhes afastou da nação o favor de tão grande nume. Dizem que viveram outrora vida ótima e muito fácil, quando, sem trabalho, encontravam o alimento; que agora é outro o seu modo de vida, a qual tem de ser ganha com labor, em razão da ofensa feita ao Setentrião e da sua cólera. 
Pretendem que as almas dos mortos passam para o reino do demônio, onde, conforme fingem do inferno os poetas, se reúnem elas e são transportadas pelo demônio para a outra margem. Depois que este lhes perguntou qual o seu gênero de morte, a saber, se pereceram de morte natural ou violenta, são conduzidas para um lugar de delícias como os Campos Elíseos, no qual existe fartura de mel e de peixe. Tal é a sua concepção da imortalidade das almas. 
Nos desertos, durante o estio, tudo fica tórrido e seco por causa dos montes altíssimos e vales muito fundos e da reverberação dos raios solares. Entretanto, no mês de Janeiro, caindo chuvas bastante copiosas, reverdece e germina o solo, tornandose ameníssimo o aspecto das campinas. As águas que se a juntam nos abismos das montanhas os fazem caminhar ou parar durante o estio. 
Nas planícies sacrificam às pedras e penedos que topam, para não serem, segundo acreditam, pos eles mordidos. 
Preparam pães da raiz attouh. Pondo-o sobre uma pedra, esmagam-na com um pau e recolhem o suco esprimido com as mãos em vasos de barro. Depois, tornam a pisá-la e triturá-la até reduzi-la a massa, da qual formam bolas que mergulham no suco antes esprimido. Do pó que se assenta no fundo fazem bolos, os quais se assam, no borralho e servem-lhes de pão. Raízes há que eles comem cruas, e outras que eles comem cozidas. 
Em tal concórdia e equidade vivem que aquele que mais possue, de bom grado, reparte o seu com quem possue menos, mostrando igual facilidade de dar e de pedir uns aos outros. 
Andam nus e imundos, e logram aquele desenvolvimento do corpos e dos membros que os holandeses admiram. As mulheres, por um sentimento de pudor, cobrem as partes com um cinto de folhas, conservando descoberto o resto do corpo. Cada dia põem este cinto novo e fresco. Os homens escondem os órgãos sexuais com tangas feitas de cascas de árvores. São depilados em todas as partes do corpo, ainda mesmo nas sobrancelhas. Só no alto da cabeça deixam crescer uma guedelha mais comprida, não sem ostentação e jactância. 
Absteem-se de marchas noturnas, por medo de cobras e serpentes, que então saem das tocas. Não começam uma jornada, senão depois de ter o sol desfeito o orvalho nos campos. 
Aos amigos acolhem-nos com alegria e depois com choro. Se topam com um inimigo, matam-no. 
Por essa época, o rei dos tapuias, Janduí, amava a filha, casadoira e formosa, de um magnata vizinho — Juckerí. Tendo-a pedido em casamento por intermédio dos sacerdotes, recusoulha Juckerí. Ressentido com a repulsa, Janduí, a conselho dos adivinhos e do povo, jurou a morte de Juckerí e a ruína de seus súditos. Encobre a sua mágua e o engano que preparava. Simulando- se amizade, é convidado Juckerí com toda a nação para um certame recreativo, e êle, sem suspeitar o ardil, desce à arena para a luta. Quando um e outro se abraçavam para brigar, as mulheres do exército de Janduí voaram furibundas tontra os cabelos dos outros e, apanhando-os incautos e detendo-os pelas guedelhas, expuseram-nos à crueldade e à chacina dos seus. Assim o rei arrebatou, com a violência e com o crime, a donzela que não pudera conseguir pedindo-a. Tinha então Janduí quatorze mulheres, e tinham sido cincoenta, das quais lhe nasceram apenas sessenta filhos. Já êle havia dobrado os cem anos. 
Isto consta dos escritos do alemão João Rabí, do condado de Waldeck, o qual, a pedido do rei Janduí e com permissão do Conde de Nassau, partira para as terras dos tapuias, afim de servir de intérprete entre os holandeses e aquela nação. Viveu quatro anos com os costumes deles, agradável ao rei, espectador e testemunha bem aceita de tudo. 
Quando o Conde Maurício preparava a sua partida para Holanda, foi esse Rabí chamado por êle e despedido por Janduí, levando consigo vinte e cinco tapuias por interesses da nação. 

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