terça-feira, 24 de junho de 2014

E se chover?


- É, seu Jack, o senhor sempre fala que gosta muito de acampar no sertão dormindo na rede por baixo de uma arvore. Deve ser bem bonito numa noite de lua cheia ou com o céu todo estrelado... maaaaas, e se chover? Como é que fica?

- Pois é, rapaz, sua duvida é plausível, dado que nunca falamos disso. Primeiramente é preciso lembrar que no sertão do Rio Grande do Norte onde costumo dar minhas remadas, microrregião Vale do Assú, ecossistema Caatinga, a chuva é rara e circunscrita num período relativamente breve do ano. Se for um "inverno" bom pro sertão, pode começar a chover já no fevereiro e se alastrar até o mês de junho. Mas, geralmente, corremos mais riscos de ter que enfrentar umas boas chuvas durante nossas aventuras de março até maio.
Outra consideração importante a fazer-se é que raríssimas são as noites inteiras de chuva e que nenhuma delas nos pegaria jamais de surpresa. Nos vastos territórios sertanejos, o visual é muito amplo e eventuais mudanças climáticas são previsíveis com discreta antecipação.
O que pode acontecer de noite, quando estamos já dormindo, é ser surprendidos por uma chuvinha fina ou uma rala e de gotas grossas, quase sempre breves.

- Sei. Mas vocês montam algum tipo de abrigo? Um toldo, algo assim... ?

- Tá bom, vou lhe explicar direito, pois para cada situação tem uma ou mais soluções diferentes. A primeira variante a ser considerada é o local de acampamento. Alguns dos campos que frequentamos habitualmente se prestam mais que outros à criação de uma área seca onde jantar também, antes de dormir.
Aí vem outra variante, que é o numero de pessoas que estão participando da expedição. Quando viajamos em grupo, com chuva ou sol, sempre carregamos pelo menos duas lonas, uma de 5x5m e outra de 3x3m, que têm tamanha utilidade em muitas ocasiões.
Com algumas arvores à disposição, dá para criar uma área seca ou duas separadas, dependendo dos casos. Depois do jantar, quando o pessoal que optou para a barraca vai dormir, se armam do melhor jeito as redes necessarias para passar a noite.

- As redes do senhor e de seus ajudantes...

- Exato: um ou dois ajudantes, mais as eventuais pessoas que optaram para dormir na rede. Tem algumas pessoas que entram completamente no estilo IGARUANA e decidem de dormir na rede durante a expedição.

- Entendi. Mas então...

- Pois é. Às vezes cai uma chuvarada forte justo após do por do sol, que deixa todo mundo preocupado. A gente monta todo o teatrinho e, de repente, a chuva para e segue uma noite de céu estrelado.
Prevendo chuvas com boa probabilidade é melhor logo carregar mais umas lonas de 3x3m, que permitem montar multiplas soluções individuais, criando uma cobertura para cada rede, se for necessário. Com estas lonas pode-se criar também  uma proteção suplementar para as barracas, em caso de muita chuva mesmo.
Quando dou uma remada solitária, sempre carrego uma lona azul 3x3m, mas rarissimamente me decido a usá-la como um toldo, acima de minha rede. Se não tenho certeza que vai chover a noite inteira, prefiro me arriscar e ficar com a vista aberta pro céu.
Em caso de chuva imprevista, o protocolo é o seguinte:
  1. Calcular a intensidade da chuva e se for fina aguentar um pouco para ver se termina em breve.
  2. Se a chuva for grossa ou persistir, levantar e dobrar logo a rede para que não molhe muito. Depois vestir a jaqueta impermeavel e, eventualmente, guardar a rede no saco estanque.
  3. Em caso de chuva fina e persistente, existe a possibilidade de vestir a jaqueta impermeável e continuar deitado na rede dormindo. A lona impermeável pode ser usada como cobertor improvisado.
- É, afinal é só água, né Seu Jack? A gente não é feita de açúcar, que derrete se molhar...

- Isso mesmo, garoto. Uma chuvinha de dia, enquanto estamos remando ou caminhando pelo sertão, pra gente é refresco!
Me lembrei agora de uma chuva espetacular que tomamos durante a expedição Lua Cheia de abril passado. Foi justo depois do por do sol. Voltando do Sítio Mutamba, chegamos ao Campo Janduí, na extremidade SW da Ilha Grande de São Rafael, avistando as nuvens negras da chuva vir na nossa direção. Logo que chegamos na ilha, olhando pro céu entendi que a coisa melhor a fazer-se era deixar a chuva passar e só depois dedicar-se a qualquer outra atividade.
Em cinco minutos, amarramos bem as canoas, vestimos a jaqueta impermeável, o chapéu de palha e sentamos enfileirados em nossos banquinhos na beirada de areia: Moreno, eu e os quatro amigos, todo mundo dando as costas pra chuva chegando. Ainda deu tempo de distribuir um pedaço de rapadura de cajú para quem quis, depois começou a chover.
O vento parou geral. A superfície do rio ficou parecendo de azeite esverdeado. O céu atrás da Serra das Pinturas todo tingido de vermelho. As primeiras gotas de chuva, grossas e pesadas, bateram nas nossas costas quase doendo. Depois começou o balé da chuva no espelho d'água na nossa frente. Milhares, digo, milhoes de gotas de chuva atingiram a superfície do rio, respingando saltitantes como numa coreografia acelerada, inspirada por algum tema musical para pianoforte de Tchaikovsky.
Choveu direto assim por uma hora ou pouco menos. Depois parou, como tinha começado, abruptamente. O céu estava já escuro e algumas estrelas apareceram na abobada celeste.
Só então descarregamos as canoas e levantamos o acampamento.