terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A etnicidade encoberta - Índios e Negros no Rio Grande do Norte


Se, nos estudos sobre o Rio Grande do Norte, as referências às identidades diferenciais são discretas, também nas representações nativas do passado, percebemos uma ausência dos principais atores da história colonial. Nos dois casos, as populações autóctones, os escravos e os seus descendentes, são relegados ao segundo plano. No entanto, quando examinamos de perto a tradição oral, verificamos a existência de elementos recorrentes que, apreendidos conjuntamente, terminam por informar sobre um passado que não foi registrado nos livros de história. Encontramos também interpretações surpreendentes dos eventos históricos que, a primeira vista, parecem totalmente fantasiosas e desprovidas de qualquer lógica: a entrada do maravilhoso no discurso sobre o passado parece estar associada a anacronismos e inversões inéditas quanto ao papel dos agentes históricos. Assim os textos orais mostram um possível caminho, tanto para o conhecimento de uma História subterrânea das Américas, entre memória e esquecimento, quanto, e senão mais, ajudam na compreensão dos processos utilizados no apagamento das identidades não européias e na interiorização de uma história elaborada pelas elites. Verificamos aqui o que ocorre em outras partes do país, sobretudo com os grupos negros do sul: sem territórios reconhecidos, tornam-se amnésicos e invisíveis.
No Nordeste, e ainda mais no Rio Grande do Norte, a história foi primeiramente escrita fora dos contextos acadêmicos e, essencialmente, pelas elites locais que tentaram apagar, a todo custo, as especificidades étnicas ao longo dos séculos. Precisamos, então, desconfiar da versão proposta pela historiografia tradicional que se esforçou em descrever os fatos, escondendo aspectos pouco gloriosos da história, chegando, por exemplo, a declarar a extinção total das populações autóctones ou subestimar o número de escravos no sertão.
Além disso, é interessante entender que a elaboração de uma versão ‘branca’ da história se funda necessariamente numa polaridade entre conjuntos opostos: índio/branco, negro/branco, índio/negro. Dualidade reforçada por uma terminologia complexa da alteridade, construída, historicamente, a partir das categorias de ‘selvagem’, ‘bárbaro’, ‘índio’, ‘caboclo’, ‘mameluco’, ‘cafuzo’, ‘pardo’, ‘negro’, etc. Alguns termos são ainda utilizados, inclusive pelos antropólogos, por falta de opção. Não designam grupos étnicos originais, mas identificam indivíduos e grupos que passaram por um processo histórico conturbado e por uma reorganização imposta pela administração colonial e estatal. Essas identidades genéricas são formas “de absorver a diversidade cultural encontrada no Novo Mundo” e fornecem mais informações sobre as representações produzidas em torno dessas populações do que dados descritivos informando sobre o modo de vida e os hábitos dos grupos referenciados.
Geralmente, os descendentes dos pálidos figurantes de uma história colonial gloriosa continuam sendo relegados a um estado de subhumanidade ou de primitividade, vista como exótica pela sociedade em geral. Herança de séculos de discriminação de toda espécie? Nesta versão, percebemos o peso de uma ideologia dominante, ainda em vigor. Aqui, as especificidades históricas, lingüísticas ou antropológicas tendem, cada vez mais, a se apagar. Entretanto, são essas mesmas categorias que devem ser aceitas, retomadas e ‘acionadas’ pelos grupos, no caso de reivindicações políticas visando a conquista de direitos ou o reconhecimento de territórios.
Hoje, no Rio Grande do Norte, a história que é encenada chega, às vezes, a ser caricatural: na versão que a Igreja adotou, nos é apresentada a imagem de um índio sanguinário, treinado por um judeu que abraçou a causa holandesa, arrancando o coração de um cristão inofensivo pelas costas!
A mitificação acontece também quando é abordado o passado escravocrata da região. O negro, quando se encontram referências, é representado como um vaqueiro solitário, amigo do seu patrão e feliz por ser escravo. Como explicar, então, se não houve uma forte presença indígena e negra no estado, que, no censo de 1940, no Rio Grande do Norte, os ‘pardos’ representavam 43 % da população total e em 1980, 56,7%? É tempo de propormos uma reflexão crítica e uma revisão da questão no Rio Grande do Norte e, sobretudo, de questionar a história local. Tentaremos assim, vislumbrar os elementos constitutivos das identidades diferenciadas, discussão que não pode perder de vista o problema étnico no Nordeste, de um modo geral.
Assim, pensamos que a história dos ‘negros’ e dos ‘índios’ que foram integrados ao processo colonial e muitas vezes associados e ‘misturados’, precisa ser reescrita, levando em conta que pouco se sabe sobre a realidade sócio-cultural em que as populações nativas se encontravam, pois foram englobadas nessas categorias genéricas, historicamente elaboradas. Para discutí-las, precisamos recorrer tanto a uma reflexão dos conceitos da antropologia, quanto dos elementos fornecidos pela historiografia.

A etnicidade encoberta - Índios e Negros no Rio Grande do Norte
de Julie A. Cavignac. cavignac@digi.com.br
Antropóloga, Profa. Adjunta CIRS-DAN / UFRN

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