Segunda é dia de feira em São Rafael. Sábado tem feira no
Assú e domingo em Jucurutu. Nos anos oitenta do século passado, quando foi
construída a barragem Armando Ribeiro Gonçalves e inundado o Vale do Assú, a
cidade de São Rafael foi reconstruída inteirinha cinco quilômetros mais pra lá
de sua sede original.
Até o fim de 2010, a antiga torre da igreja surgia do
nada no meio do rio, símbolo e cartão postal da cidade; tiramos muitas fotos
passando com as canoas perto da torre durante nossas expedições. De repente, na
noite de 17 de dezembro, a torre ruiu e desapareceu na água.
Quando o rio está realmente muito seco, como foi ficando
nos últimos dois anos, precisamos remar com cuidado entre as ruínas da antiga
São Rafael, que ficam à tona, sendo que da torre da igreja só ficou em pé um
toquinho.
Do Campo Echo dá para ver o atual porto das canoas de São
Rafael, aonde no dia de feira o vaivém de barcos motorizados, trazendo e
levando de volta os moradores das casas e vilas ribeirinhas da região, é
grande.
Como todo o mundo estava ainda dormindo, viajei em filmar
os barcos indo e chegando, assim pequei o tripé, a câmera, um banquinho e
fiquei acompanhando a movimentação: de um lado canoas e barcos, do outro:
carros, motos e também um caminhão, que vai e vem carregando todo o mundo na
caçamba por dois reais à cabeça.
De manhã cedo e à tarde são os momentos melhores para
tirar fotografias e filmar boas imagens neste ecossistema único ao Mundo: a
caatinga, típica do sertão nordestino e brasileiríssima.
Com um bom binóculo, o birdwatching não tem limites. Um
zoom legal na câmera fotográfica permite trazer pra casa umas boas lembranças
da fauna local.
Deixei a câmera filmando sozinha no tripé e fui acender o
fogo para colocar a água do café a esquentar.
Com o almoço regional na feira por volta das dez e meia,
não precisa preparar um café da manhã reforçado na segunda: pode ser normal.
Café, leite, pão, queijo, ovos mexidos e fruta.
Quando quebrei o primeiro graveto, Moreno acordou e meio
minuto depois já estava em pé, dobrando sua rede bocejando.
No Campo Echo não precisa montar a mesinha para o café da
manhã. Duas largas pedras planas oferecem uma superfície de apoio ampla e na
altura certa para pratos, canecas, bandejas, panelas etc...
Quando o barco de Severino, que vai e vem do Sítio
Mutamba, passou na nossa frente, acenando com o braço, pedi pra ele tocar a
buzina...
OOOOOOOONK!!!
OOOOOOOONK!!!
Menos de meio minuto depois, o zíper da primeira barraca
anunciou sinais de vida vindo da Área VIP.
Tomado o café da manhã, em dez minutos fomos remando até
o local onde o caminhão carrega e descarrega pessoas e mercadorias. Amarramos
as canoas no tronco de uma arvore à beira-rio e carregamos nas mochilas só o
necessário para dar um passeio na cidade em dia de feira.
Uma camioneta branca apareceu, carregada de sacos e sacos
de ração, com três pessoas em cima dos sacos. Em dez minutos, os três homens
descarregaram toda a carga e nos fomos para São Rafael na caçamba da camioneta,
cujo motorista logo me passou o numero de celular dele para garantir-se a
viagem de volta.
A feira de São Rafael já não é mais como uma vez, mas
continua característica e sugestiva. O
plástico invadiu o Planeta inteiro e fica difícil encontrar um lugar que esteja
livre disso.
Por baixo de uma
grande cobertura toda aberta nas laterais, ficam principalmente as
bancas de frutas e verduras, os grãos e os outros alimentos: os queijos
típicos, coalho e manteiga, o frango recém abatido, o peixe, todo tipo de
abobora.
Bem pequenina, encostada num poste de ferro, está a banquinha do seu Fausto, que vende raízes e
mel de quatro tipos de abelha diferente, prepara garrafada para todo mal e só
não tem remédio para a morte. Joana logo comprou três litros de mel, mais uma
garrafinha menor com mel de jandaíra.
No resto da praça, tem banca vendendo qualquer coisa:
redes de São Bento e Jardins de Piranhas, roupas novas e usadas, panelas de
alumínio de todos os tamanhos, peças de bicicleta, ferramentas, os
característicos produtos utilitários sertanejos, feitos de couro: das bainhas
de facas, passando por vários modelos de alpercatas, todos os arreios e outros
acessórios do fazendeiro, até os
característicos banquinhos de todo tamanho, de couro de vaca, se for no estilo
de Caicó, ou de cabra, se for do assuense.
Bem no meio da cobertura fica a área de alimentação, onde
a comida é preparada em grandes panelas sobre fogões feitos com latas cheias de
carvão em brasa. É comida popular feita
ao gosto do povo. Tem carneiro, bode, galinha, peixe, carne na panela e assada.
Tem buchada para quem gosta, feito eu. Tem
feijão verde e preto: pode escolher ou comer os dois. E vêm também: batata
doce, jerimum, arroz, vinagrete, farofa e, para beber, suco de fruta.
Sentamos um ao lado do outro numa das pernas de uma
grande “U”, feita de mesas cobertas por toalhas de plástico com estampa floral.
Na feira comprei fruta e verdura frescas. No prédio do
mercado das carnes, única construção no meio da praça, comprei carne-de-sol e
frango. Procurei pelo vendedor de chapéus de palha de carnaúba, mas não o
encontrei. A palha de carnaúba é muito
resistente e aguenta firme quando molhada:
o chapéu oficial IGARUANA, usado durante nossas expedições, é de palha
de carnaúba. Para não perde-lo, quando o vento sopra mais forte, é fundamental
um laço apertado por baixo do queixo.
Na loja de seu Reginaldo, comprei dez mechas novas para
as lamparinas à óleo que usamos nas noites escuras. Ali vende também chapéus de
palha, mas não de carnaúba.
Na banca de queijos ao lado do armazém na esquina,
experimentei três tipos diferentes de queijo coalho, antes de decidir-me. Gostei muito também, só de ver, de um queijo
manteiga artesanal, produto local, e comprei só um pedacinho para a galerinha
experimentar.
Delicioso, ele derrete na boca, mas é gorduroso pra
caramba.
Para quem gosta de refrescar-se e hidratar o corpo
tomando uma cerveja gelada no dia da feira, o local apropriado é o Bar do
Calçadão.
Ali você pode levar seu tira-gosto e assá-lo numas
churrasqueiras feitas de aro de pneu de carro, que ficam no quintal do bar, na
sombra de uns imbuzeiros. O povo compra sua carne, seu peixe, frango, linguiça
e assa nas churrasqueiras; se quiser arroz e feijão, para bater um rango mesmo,
ali tem.
Em dias abençoados, a gente pode ter a sorte de assistir
à exibição de algum violeiro local. Em época de vaquejadas, tem muitos músicos
acompanhando os eventos de uma cidade para outra.
Agora que falei em vaquejada, me lembrei duma vez que, almoçando na feira, conhecemos
uma dupla sertaneja vinda de Goiás, formada pelo pai e o filho,
respectivamente, violeiro e sanfoneiro. Gente finíssima, eles trajavam as
roupas típicas de vaqueiro e viajavam pelo Brasil em duas motocicletas
customizadas, verdadeiros “cavalos-de-ferro”.
Estavam rodando o Nordeste há mais de seis meses,
exibindo-se ao vivo, e também participando mesmo dos rodeios, nas vaquejadas
que fossem pintando: livres como passarinhos.
Não chegamos a escutá-los tocar e cantar, pois naquela
hora, os únicos instrumentos a ser usados foram garfos, facas e colheres.
No Bar do Calçadão, já somos os queridinhos. Desde 2008,
levamos para conhecer o Vale do Assú e a feira de São Rafael pessoas de varias
nacionalidades, quase de todos os continentes; a curiosidade e a maravilha do
sertanejo ao conhecê-las, são tão grandes quanto aquelas dos turistas que
descobrem o Brasil autentico, afastando-se das cidades do litoral.
Lá dos fundos, logo vem um prato com carne assada, toda
picadinha: cortesia da galera do Sitio Mutamba, aboletada por baixo do
imbuzeiro maior. Fui lá agradecer e
cumprimentar: muitos deles não conheço pelo nome, mas só por um sorriso ou um
aceno de braços trocado de uma canoa para outra.
A curiosidade do povo não foi tanta dessa vez, quando
souberam que estava viajando com quatro brasileiros, mas a cortesia e a
simpatia foram as mesmas.
Enfim, por volta da uma da tarde, fomos embora, passando
pela fabrica de gelo, antes de voltar às canoas: meia barra de gelo é
suficiente para os últimos dois dias de expedição.
Barriga cheia, pé no mundo; haja vontade de remar depois
desse almoço regional!
Na sombra de uma oiticica, preparamos um café forte e
gostoso e enfim zarpamos do porto das canoas de São Rafael.