Nesta segunda quinzena de maio, aproveitando que as chuvas no sertão
do RN escassearam, me lancei em duas distintas aventuras em canoa
canadense na Barragem Armando Ribeiro Gonçalves – a barragem de Assu,
como é popularmente nota – inclusive para comemorar que a própria tinha
alcançado 60% do volume máximo.
Na primeira aventura, três dias e duas noites, remontei o afluente
rio Caraú até onde deu, passando por baixo da ponte grande da RN 118 e
também da antiga ponte da ferrovia Angicos-Jucurutu, bem mais baixinha,
mas robustíssima.
Segui por mais uns quilômetros, até onde a água ficou rasa demais e
peguei o caminho de volta. Com o sertão todo verde e tanta água, o
panorama ao redor fica deslumbrante o tempo inteiro.
A experiência no rio Caraú foi tão marcante que voltando em casa,
demorei apenas dois dias para planejar outra saída; nessa segunda
façanha, fui passando por São Rafael e chegando até o Sítio Mutamba de
Jucurutu, quatro dias e três noites, uma aventura inebriante pela
harmonia com a natureza alcançada.
A seguir, umas anotações sobre a segunda aventura, em tom de relatos cotidianos.
1º dia – terça-feira
Foi uma ótima ideia deixar a canoa no córrego no dia anterior com 85%
do equipamento e da tralha já carregados a bordo. Isso facilitou muito a
logística na hora de zarpar.
Para encarar todo o grande lago sem vento forte contrário, saí
remando do Sítio Araras às 4:45, ainda escuro, quase sem vento,
apontando a proa para a Serra de Jucurutu, que de longe parece uma
pirâmide.
Após algumas horas cheguei à ilha da caixa d’água, com as ruínas de
um antigo povoado usadas pelos pescadores para arranchar. Descansei uma
meia hora e recomecei a pagaiar em direção a São Rafael, com um vento
contrário, ora fraco e ora médio. É um belo desafio para mim, mas
enfrentado com toda a segurança necessária.
Com algumas breves pausas para fazer uns lanchinhos energéticos a
bordo, cheguei finalmente ao Campo Echo, pouco distante da cidade de São
Rafael, por volta das duas horas.
O Campo Echo, que surge por baixo de um amplo juazeiro, local muito
utilizado durante as expedições IGARUANA do passado, foi um dos
acampamentos que desde 2014 não deu mais para ser usado por ter ficado
muito longe da margem do rio e de difícil acesso.
A última expedição que acampou lá, se não me lembro mal, foi uma “lua
cheia” com Pierrôt, Betinho e Mateus, os três vindo de Pipa, em 2013.
Descarregada a tralha e montado o acampamento, fui dar uma caminhada
para catar lenha. De repente, esbarrei com uma linda cobra corredeira
toda enroscada nos galhos de um arbusto seco. Reconhecida-a como não
perigosa (peçonhenta, mas com dentição opistóglifa) e não tendo
agressividade ou medo por parte dela, demorei uns minutos observando-a.
Ela me mostrou a língua; eu estava sem câmera.
Voltei ao campo, acendi o fogo, fiz um café e ainda consegui bater umas fotos do crepúsculo.
Refeição quente (e abundante) do dia: arroz da terra e feijão verde, cozidos juntos e temperados com alho, cominho e coentro.
Muriçoca braba no Campo Echo; ela ataca a pessoa por baixo, através
do tecido da rede. Vesti o poncho que é grosso, me cobri com o lençol da
ponta dos pés até a cabeça e dormi assim a noite inteira.
2º dia – quarta-feira
Despertei cedo, dormi mais um pouco; depois acordei de vez, mas ainda
fiquei perdido por um tempo nuns devaneios no balanço da rede.
Às sete horas, preparei o café, desmontei o acampamento e às oito saí
remando em direção ao Sítio Mutamba, ou melhor, primeiro para a ilha
grande de São Rafael, depois até uns baixios sinalizados por um rochedo,
trocando de margem numa longa diagonal. Foi nessa hora que alcancei os
baixios que o vento cresceu e portanto sem perder tempo escolhi uma
árvore seca no meio das águas e me apoitei; passei uma meia hora assim,
beliscando uva passa com amendoim torrado e descansando.
Quando o vento baixou, continuei pagaiando até o Sítio Mutamba, segui
mais para frente para dirigir-me ao Campo M, mas encontrei o acesso
completamente impedido pela maciça presença do aguapé, a planta aquática
invasora.
Voltei para a enseada do Sítio Mutamba à procura de um local
alternativo onde acampar. Pensei no Campo Teteu, onde dormimos uma noite
que tivemos um problema parecido, mas antes de chegar lá fiquei de olho
vivo em outras opções.
Enquanto estava nessa procura, apareceu numa canoa motorizada um
morador da vila, Bíu, que conheço desde 2008, na época de nossa primeira
passagem pelo Sítio Mutamba. Ele me contou das novidades da vila e me
disse que “está todo mundo bem, graças-a-deus”. Depois, como sempre, me
ofereceu hospitalidade na casa dele; eu o agradeci e na mesma hora
avistei um local bom onde acampar, de fácil acesso e com umas árvores
boas para armar a rede. Dei uma mãozada de fumo preto para ele, que
sempre está sem, e mandei minhas lembranças para amigos e conhecidos da
vila.
Encostei na margem e logo identifiquei o local perfeito para a canoa
passar a noite. Depois das boas chuvas, o sertão está todo verde e cheio
de plantas por todo lado. Com minhas tesoura e serra de jardinagem,
limpei a área onde acampar; descarreguei parte do equipamento, armei a
rede e esperei o calor baixar.
Quando me deu vontade de tomar um café, fui catar lenha e acendi o
fogo. Refeição quente do dia: arroz da terra com feijão verde, igual ao
dia anterior, mas na última hora acrescentei na panela uma lata de atum.
Comi em dois tempos, com uma horinha de distância, mas comi tudo.
Acabou o feijão verde e acabou o coentro também. Lua ainda cheia no céu à
noite inteira. Tirei umas fotos dela nascendo, através dos arbustos
secos, já deitado na rede.
3º dia – quinta-feira
Acordei cedo, mas com preguiça. Descartei logo a possibilidade de
realizar a Trilha da Pedra Lavrada, 9 + 9 km indo e voltando, que tinha
vagamente inserido no programa. Assim, preparei um café e fui sentar na
beira do rio, onde passei mais de uma hora no maior relax, alongado num
baixo rochedo. Depois, me lembrei de tirar algumas fotos e fui buscar a
câmera.
Os primeiros dois dias de aventura remontando as águas da barragem
até o Sítio Mutamba foram um pouco cansativos e o ritmo do terceiro dia
ficou mais tranquilo.
Preparado o segundo café, apaguei bem o fogo e desmontei o
acampamento. Carregada a canoa, zarpei do Campo SM2 às onze horas, mas
logo que a canoa saiu das águas protegidas, deu para reparar com a força
do vento contrário. Rapidamente, encostei a canoa e me apoitei num
arbusto, achando melhor esperar o vento baixar.
Às 11:30 uma segunda tentativa foi repelida pelo vento forte. O céu
ficou até nublado. Ao meio-dia, não esperei mais e fui remando em
direção à ilha grande de São Rafael; o vento, que tinha baixado um
pouco, atrapalhou bastante no começo, mas quando saí da enseada e mudei
de rumo, ficou mais fácil pra mim que fugi das beiradas e fui procurar
trajetórias mais vantajosas no meio das águas.
À uma e meia, cheguei ao Campo Jota, na ilha. A área toda estava
muito cheia de espinhos e daria um trabalho grande demais fazer uma poda
por uma noite só de acampamento.
Voltei à canoa e de repente o vento parou. Às duas horas, saí remando
devagar procurando outro lugar para acampar. De longe, avistei algumas
árvores de porte médio na ponta da entrada para São Rafael e me dirigi
para aquele lado. Achado um bom lugar onde fundear a canoa, logo
identifiquei também o local para acampar: quatro árvores, com umas
grandes pedras por baixo, úteis para fazer o fogo, sentar e apoiar
coisas.
Logo que armei a rede e acendi o fogo, fiz um café e coloquei a
comida para cozer: fiz pra mim um belo risotto de batatinha, cenoura,
cebola, alho e atum.
Esperando ficar pronto, ainda tirei foto da Lua nascendo.
4º dia – sexta-feira
Por ter escolhido um local ventilado para armar a rede, senti um
pouco de frio na madrugada e tive que vestir outro agasalho no meio da
noite, mas pelo menos não fui importunado pelas muriçocas.
No meio da madrugada, no clarão lunar noturno, apareceu no
acampamento um gato cinzento, à procura de algo para comer, mas se deu
mal, porque eu não deixo nada assim de bobeira.
De manhã cedo, quando acordei pela primeira vez, abri um olho só e vi
que a breve distância tinha uma vaca amarela me observando curiosa. Dei
“bom dia” pra ela e fechei de novo o olho. Meia hora depois, chegou
devagar uma manada inteira de vacas e bezerros, pastando e andando.
Caminhei um pouco por aí e reconheci o local como uma área que em
2012 apareceu de repente acima das águas quando começaram os longos anos
de estiagem. Naquela época só tinha pedras, aliás tão bonitas que fiz
um ensaio fotográfico B&W intitulado “Pedras de São Rafael”
(videozim no iutub). Desde então, muita vegetação cresceu, inclusive as
duas árvores por baixo das quais armei minha rede.
Tomado o café e desmontado o acampamento, peguei lentamente a remar
em direção ao Sítio Araras, apontando primeiro a proa para a silhueta da
caixa d’água na ilhota no meio do rio, e depois para a torre da
comporta, no pé do paredão. É só a um quilômetro e meio de distância que
se avista a pedra do elefante, que identifica a entrada pro córrego do
Sítio Araras.
Neste quarto dia, o vento foi finalmente favorável ao meu roteiro e
agilizou minha remada de volta para casa. Dei umas paradinhas no meio do
percurso, mas sem encostar nas margens. Tentei manter o mais reto
possível meu itinerário e não ziguezaguear de uma ponta para outra.
Idealmente, da entrada de São Rafael até o porto das canoas do Sítio
Araras, é um percurso de aproximadamente 16km em águas paradas, que
paradas nunca ficam [risada].
Observação final: fora o desafio pessoal de ir até o Sítio Mutamba contra o vento, pagaiada após pagaiada, com determinação e constância, esta viagem foi super especial para mim porque depois de alguns anos consegui novamente chegar em locais que na época da seca ficaram inalcançáveis.
Foi com o maior prazer que naveguei mais uma vez pelo grande lago artificial que o rio Assu forma a montante da barragem. Vi novamente serras e árvores, reencontrei ilhotas e rochedos, como se fôssemos velhos amigos.
Isso, garanto, é uma sensação única.
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