Fazia mais de oito meses que
não encontrava Gilson Vieira durante minhas remadas no Vale do Assu. Como a
maioria dos pescadores locais, Gilson não faz exceção ao costume de não se
afastar muito das cercanias quando vai pescar.
Cada pescador, que se preocupa
apenas com a subsistência de sua família, tem uns locais preferidos para se
apoitar e jogar a isca não muito longe de sua casa ou da vila onde mora. Com
sua canoinha, ele rema até um desses locais e, quando fica satisfeito da
pescaria, pode voltar para casa rapidamente.
Dois ou mais pescadores que se
afastam da vila e arrancham umas noites ou umas semanas longe de suas moradias,
geralmente vendem o peixe que pescam, quase sempre para atravessadores, que
levam o pescado em canoas motorizadas para as feiras da região.
Para conservar o peixe até a
chegada dos compradores, os pescadores o guardam em caixas de isopor ou salgado
no sol, dependendo da espécie.
Outro dia, acordei na Ilha
Grande de São Rafael um pouco mais tarde da hora habitual. Ainda tomando o café
da manhã na sombra das arvores do Campo Janduí, fiquei fortemente atraído pela
Serra Branca no horizonte, tão branca quanto seu nome, no céu azulão das oito
horas.
Sem itinerário marcado, decidi
dirigir-me ao SE e, deixando à minha esquerda os afluentes Catinga e Baranda,
remontar o rio Serra Branca até onde desse. Com certeza, não chegaria até o pé
da serra nessa época do ano, terceiro inverno de seca, mas bastante perto dela
para apreciar as características margens desse afluente do rio Assu.
Com uma leve brisa
contrastando o rumo da canoa, cheguei facilmente na foz do rio Catinga e
continuando a remada, depois de um rápido lanche, apoitado num esqueleto de
arvore no meio do rio, passei o Baranga e entrei no Serra Branca.
Estes três rios correm
paralelos uns aos outros numa vasta planície onde prevalece a criação de gado
bovino. Nas horas mais quentes, todas as vacas ficam se amparando do calor por
baixo das arvores verdes, que crescem solitárias ou agrupadas em pequenos
números pelo vale inteiro.
O sertão parece deserto nessa
hora. Poucas aves no céu... mais pra lá, umas quatro garças bicando minhocas no
barro mole, preguiçosamente.
De repente, de uma canoa
apoitada por trás de uma pedra pouco distante, surgiu uma voz que quebrou o
silencio.
“Opa, seu cabra italiano! Você
não morre mais nunca, que justo hoje estava falando com meu compadre, Zé Nunes,
dessa sua canoinha de fibra”.
“E aí, meu amigo... você
salvou muitas vidas nesse entre-tempo?”, perguntei, mas não num tom zombeteiro,
só curioso mesmo.
“Não sei, acho que não”, me
respondeu o outro, um pouco sem graça: “Já
não tem mais muita cobra como um tempo, por estas bandas”.
Para quem não sabe, Gilson tem
o poder da cura.
Quando criança, ele foi
mordido por uma cobra cascavel; sem outros cuidados que uns emplastros postos
por seu avô no local da picada peçonhenta, o menino sobreviveu, sem nem ficar aleijado,
e desde então ganhou o poder de salvar a vida de quem também for mordido pela
cobra.
Isso aí, acredite se quiser.
Explicação científica não sei se existe.
Se uma cascavel o morder, um
morador da região logo manda chamar Gilson, que, ciente do seu poder,
prontamente acorre para socorrer a pessoa. Vai de barco, canoa, moto, cavalo,
jumento. É só ele cuspir uma boa dose de saliva na goela do acidentado e este
está a salvo. Segundo contam, já foram muitos os abençoados pelo seu cuspe,
dezenas de pessoas, durante os últimos trinta anos.
Por esta razão, ele me contou uma
vez, meio sem graça, pois ele gosta e
não gosta de falar disso, que recebe dia sim dia não algum presente de pessoas
que já salvou e também de quem ainda não precisou, mas nunca se sabe.
É galinha, é queijo, carnes, ovos,
um quarto traseiro de carneiro; até roupa ele recebe pela gratidão do
salvamento. Como mora só com seu velho pai, que recebe uma aposentadoria, e não
necessitam de muito para sustentar-se, Gilson repassa quase tudo o que recebe
para quem mais precisa: uns primos casados e com muitos filhos, uma viúva que
mora na entrada da cidade, entre outros.
Já uma equipe de jornalistas
da TV saiu duas vezes de Mossoró para entrevistá-lo, mas ele não quis nem
conversa com eles. Gilson é uma pessoa simples que não quer aparecer.
Pelo meu entendimento, o que
ele mais gosta de receber como agradecimento, é uma camisa bonita, pois sempre
que o encontro, o humilde pescador está vestindo uma linda camisa, de
preferência estampada, em forte contraste com o resto de sua roupa: chapéu
velho de couro ou de palha, calças surradas, enroladas nas canelas. Mesmo
quando usada, fica evidente até de longe, que se trata de uma peça diferente,
bem conservada.
Numa baixa língua de terra que
separa o rio em dois canais, Seu Marcondes, tio de Gilson, irmão maior do pai dele, está
plantando batata doce com a ajuda de um único trabalhador, mais idoso que ele. Ambos
usam umas enxadas menores, mais leves de manusear, e ficam trabalhando dobrados
em dois por baixo do sol, sem parar.
“Só vão parar às onze e meia”,
confirmou Gilson, quase lendo meus pensamentos, retirando a isca de molho e
manobrando com os dois remos para endireitar a canoa em direção à sombra de uma
grande arvore, na margem do canal esquerdo do rio. Fomos remando até a arvore
conversando, aí Gilson deu um pulo da canoa e seguiu quase correndo para uma grande
casa de taipa, pouco distante. Voltou dez minutos depois, com dois livros na
mão e uma panela cheia pela metade de arroz cozido.
Ele me entregou
cerimoniosamente os livros emprestados uns meses antes, que guardei de um lado;
depois de um saco de plástico dentro do bornal amarelo, puxei uns outros livros
para emprestar-lhe: um romance de Zé Lins, uns contos de Pablo Capistrano...
procurei mais, pensando que nunca sabemos quando nos encontraremos de novo e
puxei um livro grande que tinha acabado de ganhar de um sebista meu amigo:
“Viva o povo brasileiro”, sem capa dura.
Guardados os livros nos
respectivos bornais, nos dirigimos
remando brevemente para uma simples latada erguida de forma provisória na
língua de terra no meio do rio, não muito longe de onde os dois homens estavam
plantando as batatas.
No fogão de trempe, numa
panelinha velha, cheia até a borda, estava fervendo um caldo grosso de peixe e
batata doce.
Sem precisar dizer nada, após
poucos minutos os dois trabalhadores pararam de remexer no terreno com suas
enxadas e se dirigiram pra latada.
Sem muita conversa, cada um
fez seu prato e só depois de sentados nuns tocos de troncos que conversamos um
pouco.
“Tio Marcondes completou 67
anos há dois dias”, me informou Gilson e logo o outro o corrigiu: “Sessenta-e-sete-nada!
Eu completei foi 68 anos, pois nasci em 1946”.
“O senhor não trabalha muito
pela sua idade, seu Marcondes?”, então eu perguntei.
“Mas eu trabalho porque gosto,
sabe? Bem que poderia ficar sem fazer nada já, mas eu gosto de plantar, gosto de
comer a batata que plantei, o milho, o feijão, o jerimum... Olha ele”, e indicou
o outro, que mal chegou a falar duas palavras o tempo inteiro: “Ele trabalha
comigo há mais de quarenta anos. Nunca ficamos ricos, mas nunca faltou comida,
não é, compadre Mariano?!”
“É”, respondeu lacônico o
outro, com a boca cheia de comida, a barba e o bigode salpicados de farinha
amarela.
Depois do almoço, enquanto a
água do café demorava a ferver no fogo, me decidi a preparar uma sobremesa para
comemorar esse encontro: com bananas, manteiga da terra, queijo e rapadura
raspada, improvisei uma cartola sem canela ou chocolate, dos quais ninguém
sentiu falta ou, pelo menos, nada disse. Não sobrou nada.
Depois do café e do cigarro,
ainda tomamos uma dose de uma catuaba artesanal, feita por seu Marcondes com
raízes do nome misterioso, e logo mais os dois retornaram ao trabalho.
Com Gilson, voltamos para a
sombra da arvore, mais ventilada que a da latada. Ele foi pra casa levar as
panelas vazias e os livros e voltou com mais café quente para a gente tomar.
“Se você quiser se hospedar lá
em casa, hoje, está convidado. À noite sempre jantamos com uma sopa gostosa” me
disse Gilson, já conhecendo minha resposta.
“Obrigado, meu amigo. Você
sabe que eu gosto mesmo e de armar minha rede por baixo de uma arvore, curtir um céu estrelado e ser acordado pelos
passarinhos. Quem sabe, num dia que promete chuva, eu aceite seu convite”.
“Meu pai adora suas
estórias...”, então ele disse.
“Seu pai?” perguntei
incrédulo: “Nunca conversei muito com ele. Só vi uma vez, aliás”.
“Fui eu que contei. A
preferida dele é aquela de quando você ia morrer se engasgando e o pescador
Canindé lhe salvou a vida”.
“Ai, ai... essa todo mundo
gosta”, respondi. “Imagina que quando finalmente fui tomar um café na casa de
Canindé, um dia desses, lá em São Rafael, todos os vizinhos vieram conhecer o
gringo que ele salvou. Um gesto importante pra mim, que nunca será esquecido.
Ele contou para todo o mundo.... kkkkkkkk!”.
“Vai pra onde agora?”
“Vou em direção ao Sítio Mutamba,
mas acho que vou dormir de novo na ilha esta noite e chegar na vila só amanhã.
Não tem pressa nenhuma de chegar em canto nenhum. É assim que eu gosto”.
Vesti o colete, o chapéu de
palha e sentei no meu banco, depois ter desfeito a amarração da canoa, numa
raiz da arvore.
Aí, Gilson sacou do nada um
embrulho, que me passou dizendo: “Costela de bode; já está temperada, só falta
colocar na brasa”.
“Vixe! Vou lamber meu bigode
no jantar... muito obrigado, camarada!”.
“Obrigado pelos livros”.
“Imagine! É pra você não se
esquecer de mim; nunca se sabe... ando com seu numero de celular anotado
aqui!”.
“Que palhaço...”, então ele falou
rindo.
“Palhaço, nada...”, eu disse
e, começando a remar, me despedi:
“Um abraço!”.
“Um abraço!”.